Erro ritmado
É amigo...
Quantas vezes eu errei...
Essas últimas palavras não saiam de minha pouca cabeça. Era uma desordem, uma desordem da desordem completa, uma desordem concreta. Qual um poema... Pudera fosse a vida como a poesia, as poesias... Onde, apesar do caos aparente, há métrica, há rimas ou não, pra variar uma rítmica, um ritmo, uma estética sonora, uma visão. A vida tem muito de poesia.
Banhei-me com água do fogão, a energia elétrica havia caído na região de meu bairro no meio de uma canção de Jimi Hendrix interpretada por Caetano e Gil, cujo nome não posso me recordar nesse instante pelo fato de nesse instante minha mente estar ocupada mazelas e enfermidades. O caso é que me banhei com água quente vinda do fogo de um fogão elétrico aceso por um palito de fósforo de uma caixinha aposentada pela evolução tecnológica. Mas primeira tecnologia não morre, suporta. Era manhã, por volta de onze ou doze horas, estava naquela hora em que não sabemos se usamos bom dia ou boa tarde. A força acabou no meio da canção e o meu medo era que ela não fosse restabelecida a tempo de assistir à partida do meu Corinthians pela TV. Não consegui ver nenhum dos três gols marcados no primeiro tempo, mas ela voltou. Como todas as coisas que parecem definitivas às sentenças de fim, ela voltou, e justamente quando do gol do Palmeiras. Vencemos por três a um, mas ela tinha que voltar no gol deles? Um frenesi tomou-me o corpo, um corpo sem paz como a mão que redige esse momento, um ritmo alucinado, um rock sambado.
Apanhei meu velho contrabaixo e o pandeiro dependurado em meu ombro esquerdo sem saber qual rara felicidade nos esperava. Um ensaio de rock com pandeiro? Como é possível? Com ritmo e música popular tudo é possível. Um pandeiro leve, abas de madeira e pele de carneiro. Novo! Precisava estreá-lo. Queria. Raros e benditos os roqueiros brasileiros que gostam de pandeiro, meus comparsas gostavam. Me pediram pra tocá-lo. Toquei mal. O que tocaria eu um iniciante na arte de pandeirar... Que tal um samba-rock? Gritou algum fulano baterista. Mas eu era só um aprendiz, um aprendiz sem mestre, era mestre de mim mesmo, um automestre. Como bateria um samba-rock naquele troço de bater? Tinha que ser naquela hora! Tinha que ser no gol do Palmeiras? Ta certo que vencemos, mas podia ser de zero! Ou a luz poderia ter demorado mais pra voltar e eu não veria o gol, seria melhor. Todavia vi. Tomar gol deles nunca é bom, mesmo que vencendo não é razoável um gol qualquer nos subtraindo o valor da vitória, sobretudo daqueles grandes rivais. Nessas escassas condições toquei o instrumento e assim me enraiveci com meus companheiros musicais. Sei que queriam somente uma batida nova, algo diferente, mas isso não vale minha vergonha. Desisti. Não toquei mais. Procuraria um professor na quadra da Unidos do Peruche.
Um dia depois em casa, coloquei muito sambas para rodarem na velha vitrola, era Noel, Cartola, Pixinguinha, Chico, Beth, Adoniram, Moreira, Zeca, etc. Depois foi a sessão forró-baião com Gongão encabeçando a fila que vinha acompanhada por Dominguinhos, Jackson, Alceu e Zé. Até na bossa me aventurei, em minha cabeça os ritmos eram muitos em uma única coisa. Assim dia passou, como na desordem de um poema concreto, um caos sonoro em minha mente produzia ritmos variados e sem sentidos comuns. Estéticos como a lágrima no riso ou o riso nos nervos.
Mais tarde percebi que todos aqueles ruídos eram apenas sombra do ritmo, pelos seus vários trejeitos e caminhos distintos assim me provaram. Nenhuma maneira se igualava ao gingado sutil de minha pequena. Beijamo-nos e nos amamos na melodia sutil de Miles, nosso canto tratamos de criar na riqueza do improviso, caiam gotas, raras águas, enquanto os braços se enforcavam para que a gravidade não fizesse com que o corpo pesasse o que pesa para a terra. Era claro, era escuro, um lindo tango deslizava, na mente o pandeiro batucava à preparar a cama para as cordas e os dedos tocarem as linhas do pentagrama, o sopro surgia como que pra dizer o indizível das indivisibilidades do verbo e dos gametas. Ao final um canto fora do ouvido finalizando o que pudera ser senil tristeza, farta beleza alegre. O que finda, finda sem julgamento de valor, e nessa pausa é reconhecido o ideal do que seria uma pretensa vida. Mas as energias se renovam no corpo ou na rede elétrica ou na cana-de-açúcar ou no ritmo da percussão, ela, como a história, é cíclica. Eis a alquimia.
Dessa vez saí decidido.
Toquei pandeiro. Parei.
- O que houve?
- Não sei.
- De novo então! 1 e 2 e...
Errei.
E foi uma sucessão de desencontros musicais, tentamos que a guitarra virasse cuíca, Que absurdo! Que idéia! Tentamos inversões e outras invenções. Nada saiu. Mas garantimos a diversão. Um caos alegre, um mundo cão em horário nobre, nada fora da pauta editorial, como um virgem e uma puta, o cu do cu de quem regurgita regras, Que maravilha o caos! Afinal como era antes do Big Ben? Com a ordem as coisas não pioraram? Só a música. A única boa cria da ordenação, somente ela.
Já no botequim, após onze ou doze cervejas, melancólicos e vagarosos e divertidos como um blues em si menor.
- Que som foi aquele?
- O princípio do universo, respondi.
- Quase enlouqueço.
- Eu ensandeci, desce outra garçom!
- E aquela batida? Não vá esquecê-la heim!
- A do churrasco?
- Do ensaio...
- Era um “baisamba”, baião com samba.
- E eu mandando um rock!
- Pois é. Brasil.
- Por isso estava fora do compasso.
- Faz parte da experiência, “C’est la vi”. Nada há de certeza a não ser o que se experimenta ou o que transcende. Eles são mais certos que a certeza da morte.
- E a morte é certa?
- Só morrendo...
- É amigo... Quantas vezes eu errei...
As portas de aço do bar começaram a ser baixadas, disseram que acabara a original, sem petiscos, o show de B.B. King que passava no vídeo foi desligado. Que bom! Amanheci sorrindo sabendo que tinha errado.
RODRIGO H.