quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Tema 7 - Noite

NOITE


Finda a tarde.

lápis caem,

copos sobem.

afrouxam-se os nós,

apertam-se as cadeiras.

olhares sisudos, palavras guardadas,

se soltam.


Inicia-se a transformação.

verdades vem à tona,

todos os gatos tornam-se pardos...


a noite chega,

boêmios

deleitam-se

nos encantos da

escuridão.


santos pecam...


o mundo se

revela

na noite.

LUCIANO

Tema 7 - Noite


12:51



Meia noite e cinqüenta e um, e a noite começa. É quando o vocal inesperadamente profundo de Julian, mesclado com a guitarra caracteristicamente distorcida de Nikolai, inauguram e dão o tom de mais um sábado. Que os trabalhos comecem.


Aqui é onde os posers e pretenders que fingem ser parte do resto da nossa parte, são revelados e expostos descrédulos em meio a fiéis e eternos fluorescentes adolescentes. Nunca um problema, todos aqui são bem vindos não importam as crenças, embora eu só acreditaria em um deus que soubesse dançar. Meia noite e cinqüenta e um é onde eu me sinto em casa, a minha casa, a minha noite. É o nome da minha noite como DJ aqui.


O lugar é um velho sobrado de tijolos a vista, circundado por casas e garagens e velhas arvores fincadas atrás das cercas, em uma estranha e tortuosa ruela urbana, profundamente encravada no coração do centro novo, pedindo por berros em meio a quietude adormecida. Está lotado mais uma vez, já virou costume. A ironia de homenagear a noite entre paredes me fascina. A culpa fica a cargo do som, o pulsar desse batimento, o pó das estrelas que pulsa em pulsos impulsos no ar. Esperanças e expectativas, buracos negros e revelações, como bem diria Matthew Bellamy, mais um irmão entusiasta da nossa cena.


Meia noite e cinqüenta e um é a minha mais pura e singela declaração de amor a essa troca. Não, singela não. Suja. Dentes cravados nos lábios alheios, sem as preliminares adequadas, cabelos revoltos, excitados, desejos além das palavras, de vira-latas perdidos uivando entre caixas de som em vãs necessidades carnais sempre indizíveis, além de palavras.


E ainda assim, meia noite e cinqüenta e um é quando minha voz encontra as palavras que eu procuro e os sons que se expressam em um coral empolgado de acordes de guitarra e efeitos, gritados a exaustão a plenos pulmões, em meio ao neon que lava nossas almas na pista em uma grande celebração em tons radioativos das nossas vontades e promessas, tão grandiosas.


Meia noite e cinqüenta e um, o clímax carnal de emoções etéreas. Viva rápido e morra jovem, é a nossa decisão. Nós temos a visão, a vida no seu ápice quando o sol se esconde.

ANDRÉ OZ

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Tema 6 - Silêncio

silêncio dilacerante dos corpos.

dois amantes em comunhão

no descompasso.


vontades distintas,

desejos.


o mesmo fim,

meios opostos.


A tentativa,

o desencontro,

o silêncio.

LUCIANO

Tema 6 - Silêncio

The Ballad of Sad Silent Hearts


O terno nunca lhe pareceu tão incômodo.

A gravata lhe enforcava como nunca antes. Seu pescoço se encontrava marcado pelas crescentes e incessantes investidas de seus dedos, afastando e alargando aquele colarinho apertado que parecia se contrair a cada respiração profunda e repleta de anseio em seu peito.

Formatura. Ciclo completo. Todos os desejos, vitórias e decepções que se acumularam por quatro anos, ganham a sua cereja num bolo nostálgico, destroçado a ferozes garfadas a cada figura desse passado recente que passa por você. Com ele e com ela não era diferente.

Eles passaram por tantas coisas juntos nesses últimos quatro anos. Dramas que prolongam e definem parágrafos, preenchem poemas e inspiram letras escandalosas de rock ‘n roll indie. Sempre acompanhados, mas nunca um com o outro. Exceto nas noites onde o calor e os corações falavam mais altos, e os encontros escondidos prometiam uma tradição que nunca se realizara.

Apesar disso, os outros eram os outros e sempre foram só os outros. Eles se encontravam, entre idas e voltas, chegadas e saídas, como ninguém mais conseguiu nesses fadados quatro anos. Agora, nesse ciclo completo, finalmente o destino parece dar o braço a torcer.

Calma”. Resume toda a idéia que ele repete a si mesmo como um mantra, na provável décima-quinta vez que vai ao banheiro, seja para arrumar o colarinho amaciado pelos seus constantes ataques, seja para retocar mais uma vez seu cabelo, em busca de uma simetria assimétrica inatingível que desafiaria a perfeição grega.

Impaciente. Mas uma impaciência boa. Gostosa. A ansiedade de subir em um pódio, champanhe em mãos. Do primeiro acorde da primeira música do primeiro show. De esperar a garota da sua vida descer por entre os degraus acarpetados de um salão, tapete vermelho, intenso como o sangue que entra em ebulição nas suas veias ao contemplar essa visão.

Ele quer se entregar às alucinações e enxergar flores de lótus que imagina se abrindo a cada delicado passo no caminho dela. Todas as declarações já haviam sido feitas a menos de 24 horas atrás. O timing fora perfeito, justamente quando ele e ela finalmente estavam solteiros juntos. Desimpedidos e prontos. Tudo que faltava era o glamour da formalização.

Suas mãos se encontram, seus corpos se aproximam, e o apaixonado beijo que atrai os olhares de todos faz toda a inquietação ceder lugar a resplandecente calmaria das sensações. Ela literalmente o arrasta para a pista, em um mix de súbita timidez frente aos olhares de comemoração dos amigos e conhecidos, com a necessidade e a desculpa de estarem mais perto, mais juntos.

É somente no “precisamos conversar..” que ele repara que algo não está tão certo.

Ela hesita como se pudesse, com sua eterna e característica indecisão, congelar o tempo até que a melhor forma de falar o que precisava ser dito pudesse ser concebida. Infelizmente esse era um poder que ela não possuía, ao contrário de seu inabalável senso de oportunidade. Não era questão de achar uma hora melhor. Simplesmente não haveria outra.

Ela conta e seus olhos chegam a lacrimejar. Até ontem declarados, hoje a mão pérfida do destino se faz presente na forma do ex-namorado. O primeiro, eterno ex retorna e com ele promessas de ares internacionais e realizações de sonhos que não poderiam encontrar hora mais desagradável para serem realizados. Mas sonhos são sonhos, cujo propósito de existência é a própria realização, independente dos desejos alheios a serem atropelados no caminho.

Toda a perfeição e sincronia do momento cedem lugar à fúria e frustração insana ao constatar que tudo que restaria aos dois seria aquela noite, aquela festa e aquela pista. Nada mais precisava ser dito. Não havia necessidade ou razão, quanto mais tempo. Naquela que foi a última dança, seus corpos estavam mais juntos do que nunca antes. Naquele último beijo, o silencio falou por si só.

ANDRÉ OZ

Tema 6 - Silêncio

Silenciar



Não faça de mim

O silêncio que a vida não trouxe

O raro belo falo

Que querias no fim

Hoje dormita em panos quentes

Diferentes dos que aos poucos

Foram-se com o amor

Que culminou no nada

Nem na gente

Fervilha em vão

O vão mundo cão

Das coisas faláveis inefáveis

Infalíveis beijos noturnos

Taciturnos bichos

De hábitos antigos

Como o calar do desejo paroquial

Pela figura imaculada de Maria

O silêncio grita no coração

De quem não o exprime

De quem não se redime

Às coisas mundanas

Do baixo ventre

Dores intravenais

A deslocarem a rota

Do quadrado ao cubo

Da equação inexeqüível

Da composição da costela de adão

Jura-la-ia que as injúrias

Absorveriam meu peito

Para poder dizer

As falas, belas raras

De um lirismo pudico

Que se refere à falta do ruído

Que habitaria um corpo

De máculas quietas

Morais amorais

Orais amor ais

Ais amo raiz

Amor aí saís

Mora e sai

Ora e vai

Vai

Vai com teu cheiro de inquietude entre os dentes que calam pela falta do próprio

Autopensar

Autopenar


RODRIGO H.

Tema 1 - Amizade

Remédios antiácidos



Era tempo já não se viam. Primaveras a fio e a ausência tornara o costume prática de cada dia, o tempo deus era senhor, como Cronos devorando seus filhos e os regurgitando em forma de pedras, os sentimentos assim ressurgiam num nostálgico memorial construído a reminiscências fraternais. Muitas canções, outras orações, fés cegas e crenças perdidas fazem a brincadeira da vida um sério exercício de lágrimas e risos.

Era uma bela foto aquela em preto e branco cujo olhar olhava com seus olhos negros quase africanos. Ela chorou. Poucas lágrimas bastaram para a tradução daquelas sentimentalidades inúteis à prática diária do fazer laboral, eram as inexplicáveis saudades da língua portuguesa. A culpa era da língua, nascera lusófona como a mãe.

Quinze anos na Europa mudam as pessoas, às vezes não se reconhecia em tais comportamentos frios que no passado julgara desumano. Deixou o Brasil aos dezesseis anos, uma criança, agora com seus trinta e um anos completos trabalhava no que sempre sonhou, passava o dia na bolsa de paris ganhando a vida com especulação de papéis. Sua rotina frenética não lhe permitiu laços estreitos com homens tampouco com mulheres, nem sabia mais ao certo sua preferência. Seu maior prazer era o sorvete de chocolate após o almoço, Ah o sorvete!, mais uma rotina dentro da rotina, mas aquela se derretia mais rapidamente, Que problema o tempo perdido pra lavar as mãos após cada sorvete! Compensa-lo-ia com outros lucros. Após dias de nula diversão resolveu: iria a um café contíguo à bolsa logo do fim do pregão acompanhada de seu moderno I Phone. Ah que prazer inenarrável aquele cheiro! Cada gota do líquido filho da revolução industrial era-lhe degustado como noz-moscada ou canela para o tempera daquela Europa renascentista.

De volta à sua casa a dor lhe mataria, era no estômago, gastrite, úlcera, café... O que seria aquela dor? Encontrou o retrato à procura de remédios antiácidos. A foto aguçou-lhe a dor, esqueceu-se do emplastro, do café, do pregão... Afixou olhar em si a partir daquela imagem análoga a Carlitos. Era cena de um filme mudo, o quarto ao redor banhado à sépia, cores primárias presentes só por dentro, onde as câmeras da representação não atingiam. A acidez da vida lhe pegara admirando a imagem da imagem própria, era seu sentimento ao lado dele, aquela longínqua figura de sua infância renascera sem vida num objeto inanimado e velho, doía mais que quando de seu fim. Seu amigo desaparecera, à época eram quatro anos de diferença, foi-se sem um último abraço. Uma discussão irascível acerca de infortúnios infrutíferos foi a causa, não da morte, do não-abraço. Morrera num cruzamento dia seguinte voltando dum lugar qualquer cuja memória lhe bloqueara a lembrança. E nem um abraço... Transcendera o amigo ficou uma imagem, dele? Dela? Um reencarnado noutro, como Quincas Borba ou Jesus Cristo feitos à semelhança do pai, uma constante continuidade. Nela vivera o que havia de bom e de não muito bom nele, como preferia se referir às veleidades do amigo, mas as poucas lágrimas derramadas regaram a falta de cores daquele retrato, tornando à vida o que a vida matara.

RODRIGO H.

Tema 5 - Tempo

Tempo, tempo, tempo ,tempo
me ajude.

Tempo, tempo, tempo ,tempo...
faz sua parte,
apaga esta lembrança
que teima em voltar à minha
mente.

Tempo, tempo, tempo ,tempo
você que passa tão rápido quando quer.
Joga sntimentos no limbo
quando te interessa.

Tempo, tempo, tempo ,tempo
mostra pra mim que estou
errado.
mostra.
mostra que você é o senhor da razão.

Tempo, tempo, tempo ,tempo...



LUCIANO

Tema 5 - Tempo

Love Song #5



10 minutos atrás


Stop making the eyes at me, I’ll stop making eyes at you. Eu não quero que ela pare e eu não quero parar também. Eu só queria que ela não me ignorasse quando aquele canudo vermelho sofre por mim, preso em seus lábios. Vermelhos.


Daqui a 2 minutos


O tiroteio de neon marca cada passo que eu dou na direção dela, provocando a intenção de promover controle quando o que eu quero é tudo. Os álibis se engasgam a caminho da garganta, até que a certeza finalmente se faça presente.


6 minutos atrás


Eu enxergo através da afrodisíaca neblina de fumaça de cigarro e gelo seco, como um superpoder radioativo que brota na necessidade de sobrevivência urbana. Eu a olho me olhar. Ela não emite um som, mas eu a escuto me chamar. Outro superpoder, dentro de uma série de outros, muito mais físicos, que se manifestam a cada segundo a partir daqui.


Daqui a 5 minutos


O mundo parece parar ao meu redor e ela parece surpresa quando chego, como se não apostasse que eu tivesse a audácia. Como todos os outros que se contentam com a observação platônica de lindas garotas em pedestais de neon. Divindades espaciais, dançando em meio a um tiroteio estroboscópico psicodélico, embaladas em seus all-stars e batidas perfeitas. Rock is love.


3 minutos atrás


Que fique claro, não há amor ali não, não há Montéquios e Capuletos. Apenas a pista, a suja pista. As batidas sujas e fantasias mais sujas ainda.


Daqui a 7 minutos.


Você parecia entediada daquele lado da pista”


Daqui a 7 minutos e 32 segundos.


O beijo é toda a recompensa que se prometia ser. Toda a razão de ser e de estar ali, celebrar a miríade das formas que eu te amo agora, se explica na exploração dos cinco sentidos no encontro perfeito daquele momento único.


Isso é tudo que temos, e isso basta.


O momento.


Agora.


The room is on fire as she's fixing her hair.

ANDRÉ OZ

Tema 5 - Tempo

Areia



Era a terceira vez que virava a ampulheta, a areia trocava de lado a cada hora, num canto da sala branca e vazia uma pétala flutuou até tocar o chão de madeira velha onde alguns cupins saboreavam seu café, a rosa envelhecida espalhava sua tristeza ao redor. No centro do amplo recinto ela chorou, chorou com uma lágrima, mas chorou. A vã lágrima solitária se juntou aos restos de rosa e madeira compondo um mosaico único de humanidade visceral. Era cair da tarde e poucos raios do ocaso transpunham as venezianas da nostalgia daquele apartamento. As mentiras passam como as verdades e no final, representado pelo presente, o que resta é sempre só o que resta, nem o vazio das palavras basta para amenizar a memória, a lembrança, a vida dói de dor de vida, mas passa, passa para que outra vida venha mesmo que similar à anterior. Não se vive de frutas ou de carnes, se vive de alquimia. O espaço-tempo questionado a partir do espaço da fenda das reminiscências vindouras atuava em sua tragédia grega da eternidade da prisão dos sentidos humanos.

O tempo passou, se foi também para ela que sonhara viver eterna adolescência. O resto de suas coisas já tinha ido com o caminhão-baú, dirigiu-se ao criado-mudo (único móvel que fez questão de levar consigo), onde seca flor despetalada. Na gaveta fotos e objetos pequenos, pingentes, brincos, batons, etc, lhe traziam lamentos sobre as belezas passadas. Fotos lindas, ainda que feias, moldavam seu olhar abatido pelo instante. Seu telefone celular tocou, estava tudo certo a nova casa era linda, seu esposo já providenciara tudo pra sua chegada. Isso aos trinta anos parece reles vivência ao espectador que um dia chegara lá, mas para ela era a dor do tempo, a dor da despedida. As fotos trazem notícias do que se é, e isso invariavelmente acarreta dor de alma, coisas incuráveis até pelo tempo ou pela distância ficam cravadas nas imagens pigmentadas num papel. Basta rasgá-lo. Coisas de morte e de vida chegam pra sair, e sempre saem, não tem remédio. Coisas chegam, coisas ficam, mas pessoas vão com ou sem razão, vil ou vício vão, um vem outro vai, e quem vai leva consigo o que fica.



A ampulheta iniciou nova contagem, a casa era ampla e cheia de cômodos, o findar do seu casamento deu-se dias antes. Pela quarta vez ela contava o tempo, nove anos antes subia ao altar da igreja de Santa Clara para pedir as bênçãos do padre e de seus pais para a continuidade da raça. Findou. A casa continuava grande, mais lágrimas do que flores, dessa vez era tudo lindo em volta dos olhos, menos o borrão de sua maquilagem. Se aos trinta fora duro sair da casa onde a companhia da solidão lhe afagava o peito, mais dura e compreendida essa nova despedida. Aos trinta e nove e sem nunca ter lido Balzac essa bela balzaquiana juntava seus novos cacos de um chão sem pétalas para compor o que viria. Na lâmina d’água do lago em frente, sua imagem narcisista se desfazia pelas marcas de expressão e rugas que não cessam em surgir, a vida marca o tempo que passa por ela á sombra da vontade humana, um peixe saltou, rodou a ampulheta, era hora do almoço.




Uma bela criança! Era assim, linda como toda criança ao nascer e aos olhos dos pais, por mais joelho que se pareça, continua inenerravelmente linda. Linda como o cordão umbilical, linda! Quando nasceu era assim, mas os pais não tinham mania de ampulheta, não se preocupavam com o futuro e o futuro os levava para o futuro e para a eternidade da ignorância, a simples ignorância de ignorar. Aos dez queria viajar no tempo como Einstein propusera, queria conhecer esse tal maluco. Aos dezessete não passou no vestibular para física da universidade de São Paulo. Tentou mais três vezes, a ampulheta girou outras zil, mas limitou seu conhecimento a revistas especializadas e alguns periódicos.


O ventou soprou na praia levantando areia, deslocando o que estava no chão, entre areias e pedras e sujeira, o que ficou pra trás ficou... O trem parou na estação. Entraram os passageiros. A estação vazia ficou, o espaço e o tempo se encontraram no que havia quedado. Uma pausa. Parou! E o resto continua porque o indefectível olho humano continua a olhar, o que não se olha não se vê. É onde reside o silêncio de Cronos, quando deus descansa, é a ausência de corpo, não há dias, não há decênios, qüinqüênios, milênios... Não há nada. A pausa da morte. O findar é o infinito no instante seco, parado, turvo, embriagado. Já parastes alguma vez? O tempo pararia junto, o espaço desvanecer-se-ia. O que existe, existe por engenharia frustrada. Nem Cronos, nem Cristo saberiam responder em que se está inserido. Oxalá!


Morreu aos cinqüenta e dois, e daí? Em seu túmulo jaz como outro jazeria em outro túmulo qualquer. Seus filhos lhe depositaram em lápide sua ampulheta vazia.

RODRIGO H.

Tema 4 - Desvio de conduta

Profissional





Girou a maçaneta dourada em sentido anti-horário, seu vestido era alvo, quase uma noiva, tão linda quanto as noivas mais feias sonham em ficar quando do casório, caminhou a tranqüilos passos elegantemente pelo branco corredor do quinto andar do edifício Marrocos, onde quase tudo era da cor da junção de todas as cores. Sua silhueta chamava a atenção dos porteiros que vigiavam as dependências do prédio pelas câmeras de segurança. Ela caminhou. O elevador parou. Pressionou o “T”. Um andar após entrar a madame com o poodle entrou o senhor da manutenção. O poodle mordeu o Sr.. Fétido e com ferramentas diversas em sua maleta não fez caso ao cão. Desceram no “T”. A portaria parou para olhar aquele belo exemplar feminino. Passou, o perfume ficou. Ela cansada deslizou pelas ruas do bairro em busca de condução, eram sete e meia da manhã, encontrou o táxi. O condutor, um senhor de sessenta anos, dormia no interior do veículo enquanto no rádio um samba-canção de Lupcínio Rodrigues embalava seu sono.


- Olá. Bom dia.

- Bom dia... A senhorita me desculpe, mas...

- Sem problemas, Alameda Jaú 1230, por favor!

- Claro. Gosta de Lupcínio?

- Não conheço.

- Pois deveria conhecer. Lembro-me de minha juventude dos...

- Não gosto de música velha.

Silêncio.

- E das novas?

- Tampouco.

- Mas porque não gosta de canções? Tem tantas belas?

- Pra mim são todas iguais, samba, rock, choro, jazz, eletrônico, quando não são iguais são clássicas, o que me deixa muito entediada. Por causa do meu trabalho que me forço a conhecer algumas delas, o que me deixa com mais certeza de que não gosto de nenhuma delas.

O motorista desligou o rádio.

- Chegamos.

- Quanto é?

- Trinta e cinco reais. Mesmo horário amanhã?

- Meia noite ainda é hoje.





Ao longo da semana muitos clientes ligaram. Contudo andava ocupada demais com um certo príncipe que estava em visita pelo Brasil. Assim como não gostava de música detestava jornais, preferia ler romances, contos, poesias, algo que lhe furtasse a realidade, o que não era possível com as músicas, de maneira que desconhecia o paradeiro de vossa alteza. Fazia seu trabalho e pronto. Autoridades não gostam de sexo, sabia que aquele homem de fala estrangeira não era um mortal qualquer. Uma semana de gala para ela. Não que outras também não fossem, mas quando um serviço desse aparecia era melhor, não tinha sexo. Não escondia de seus clientes que apenas cumpria seu ofício, nem que adorava um boquete, isso era cortesia. Muitos murmúrios a cercavam de lágrimas naquela semana Lauro, seu melhor cliente, havia sumido há uma semana, tempo em que não o via, estava a serviço de vossa majestade. Ademais disso as quintas eram sagradas. Dias úteis, feriado, chuva, sol... se nas férias viajasse voltava na quinta-feira, mas naquela semana ele sumira. Não ligou nem atendeu aos telefonemas.




Girou a maçaneta, a porta se abriu. Apertou o “T”, notou borrada a maquilagem, retocou-a, eram doze andares até o “T”. Contou a grana, eram dólares, não sabia como funcionavam as variações cambiais, sabia que eram dólares e que valiam mais que sua moeda. Chegou. Outros vigias lhe notaram, estava acostumada, eles sempre notam, os homens, vigias ou não, sempre notam. Ela passou. Seu Moreira a esperava dessa vez sem canções e apenas numa pestana, quase em vigília, Toc, toc!


- Bom dia linda.

- Pra padoca Moreira!

- Ele é sheik?

- Sei lá que raios é aquele cara!

- Pagando bem...

- Você aceita dólar?

- Claro!

- Hoje é em dólar ta.

- Qual padaria?

- Qualquer uma. Preciso de um “drink” e cigarro. Tem?

- Quanto você cobra Marília?

- Depende.

- De quê?

- Da cara, do tipo de serviço, do tempo...

- Pra mim mesmo. Quanto sai uma horinha?

- O que você quer?

- Boquete?...

- É cortesia. Trabalho com cortesias, pra conquistar a clientela. Mas o cliente paga o quarto.

- Grátis!

- Teu pau ainda sobe? Senão tem que comprar viagra.

- Sobe.

- Pro senhor faço quinhentos reais a hora, completo, sem beijo! Sabe como é, sou profissional.

- Não tenho.

- Então... Na esquina tem uma, pode parar ali mesmo.

Pagou, desceu. Moreira abriu a janela e a chamou com os dólares na mão.

- Um mês de corrida grátis. Que tal?

- Pensarei. Espere um pouco, não vá embora!

Comprou um maço e voltou.

- Não quero mais “drink” e perdi a fome. Nunca trepei com um velho como o senhor, vai ser diferente.

Moreira sorriu um riso de danças carnavalescas. Deixou-a em seu flat e foi à farmácia.

No dia seguinte era folga de Marília, ela saiu à procura de Lauro. Foi à delegacia, hospitais, IML, quadras de futebol, botequins grã-finos, puteiros de luxo conversar com suas colegas, mas ninguém sabia seu paradeiro. Só não foi ao seu apartamento, mas ainda era terça.

Quarta-feira, três de novembro, meia noite:

- Olha aqui! É uma hora pra um mês de táxi heim!

- Fechado! Pode começar.

- Pô Moreira! Ta pensando que eu sou o quê? que eu sou uma qualquer? Só no quarto.

No quarto:

- Comprou?

- Comprei.

- Então toma! - Moreira tomou a pílula – Já fumou maconha?

- Só cachaça.

- Dá um tapa.

O velho relaxou e dormiu. Marília admirou a cena. Chupou. Nunca havia feito em um homem tão velho! Aproveitou o estado de Moreira e lhe abusou. Imagine só! Velho, quase morto, de pau duro, estuprado por uma puta. Era o que Marília desejara desde o começo da carreira. Estuprou o velhote adormecido, pegou as chaves do táxi. Girou a maçaneta. Desceu pelas escadas, o elevador pifou. À garagem ligou o automóvel branco e se foi. Sem câmeras, sem vestidos, sem homens, quase sem gasolina.


- Completa!

- Álcool ou gasolina?

- Ah! Sei lá!... Gasolina...

- São cento e cinqüenta.

Pagou. O frentista lhe desejou as pernas, mas estava trabalhando. O que se espera de um frentista em serviço? Ou de um taxista? E de uma puta, o que se espera? Trabalhando está bom. A impaciência tomou-lhe o globo ocular, queria achar um polícia, andava por uma estrada para o interior. Onde estaria Lauro? Iria ao edifício Marrocos assim que amanhecesse. Queria muito vê-lo. E se ainda não estivesse lá? Onde estaria? Mas não era afeita a ler jornais.


Beijou-lhe todo, do púbis ao pescoço, Lauro tremia. Ela tremia. Beijou-lhe a boca:


- Na boca não Marília!

- Mas eu te amo!

- O que é isso?

- Me beija!

- Não! Pára! Sem beijo. O que deu em você?

A facada foi certeira. Entre o pescoço e o ombro esquerdo, bem no trapézio. O sangue era um, cercado de glóbulos. Chão era um, lençol era uma, faca era uma, colchão era um, era uma coisa só, um quarto, um sangue.

Banhou-se, perfumou-se, pintou-se.


Girou a maçaneta dourada em sentido anti-horário e desfilou seu vestido branco até chegar ao altar descendente do elevador. Apertou o “T”. Chegou. Desceram poodle, madame e Sr. da manutenção. Apagou Lauro da vida e o beijo e da memória. Apagou o prazer de trabalhar, a gratuidade do prazer, do amor, do prazer. Um desvio, um amor. Esqueceu-se. Esqueceu a conduta. A profissional.

- Quanto é?

- Duzentos e cinqüenta.

- Completo?

- Só oral.





RODRIGO H.