quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Um pouco de sangue e outras verdades


Era dia de morte. Aquele cadáver jazia aos pés dos pés de quem o via. Uma imagem sacrossanta para os envolvidos no episódio das casas. A imagem da mãe morta, olhos abertos, sentenciada à escuridão do infinito incerto, olhava seus filhos como quem olha ao vácuo, altivando o medo da família sobre a reles estadia humana na Terra e ao findar o cultivo do vazio eterno. Deus se fez presente nas orações egoístas de quem mirava a cena e gostaria crer que fosse miragem a imagem da mãe morta. Ausente aos pés do olhar.

Desde o nascimento de seu primogênito, D. Neiva dissera a verdade. Segundo sua ótica a verdade deveria ser dita, mesmo que segundo sua ótica. Assim a vida caminhou, e de verdade em verdade muitas verdades eram alumiadas, outras arquitetadas, algumas vividas... E a verdade tornou-se refém de si. Quando da infância a verdade se fazia presente para a obediência dos filhos e para as médias escolares não fugirem do controle. Quando adolescentes a verdade lhos servia para trilharem o caminho correto, o caminho do bem, e deixar a vadiagem aos vadios filhos alheios. Na idade adulta a verdade continuou sua saga dantesca em busca de não se sabe o quê. Mas ao que consta, hoje é perceptível que a verdade não passa de um argumento para o argumento da falta que faz uma certeza.

Eram muitas e de variados tons, do mais claro ao retumbante escuro, do pastel ao fluorescente, de Tarsila a Caravaggio. Assim eram as casas, assim se amontoavam como em uma grande cidade onde circundava apenas uma pequena vila. Seus moradores de nada necessitavam senão seu próprio meio, uma auto-suficiência beirando ao nicho ecológico de qualquer animal.
Pela manhã de uma certa sexta-feira, dia sagrado ao vilarejo, quando a jaula se abria para a soltura dos animais indefesos e para os do topo da cadeia alimentar, o movimento era incomum para aquela paz atormentada das fofocas e dos burburinhos angelicais. Na casa verde a vermelhidão se fazia imperial como as palmeiras, e um rio e outras tristezas jorravam seus resíduos para fora entre o chão e a aquela porta banhada a hemorragia fresca. Nada de alarido anterior aos cochichos da vizinhança provocados pelo espetáculo, prova ocular não havia, tampouco foram encontrados instrumentos cortantes, torturantes ou outros fazedores de dor. Apenas sangue fluindo pelo batente e no espaldar do tosco móvel onde agonizou D. Neiva, era um corte estreito e profundo entre as costelas atingindo o coração, coisa de profissional! O autor da obra preocupou-se em girar o objeto, um tipo incomum de faca, a rubrica estava garantida.

A aglomeração, à chegada da imprensa, era digna do sensacionalismo fazedor de audiência, muitos transeuntes e curiosos dificultavam os trabalhos periciais da polícia científica e dos médicos legistas. Periódicos televisivos noticiavam ao vivo a famigerada eventualidade com a malícia própria das meias palavras, onde basta a opinião de si para resolver verdades alheias. Essas verdades factuais ainda renderiam muitas matérias e com elas suas isenções, além de lucros e dividendos para os detentores de algumas concessões governamentais.

O revés de D. Neiva teve seu prelúdio no culto de terça-feira, segundo alguns fiéis da vizinhança ela estava com o demônio encarnado em seu corpo, virava os olhos, babava e até bocejava, eis que Lúcifer acabou sendo sentenciado pelo bondoso pastor Herculano, Sai satanás! Sai demônio desse corpo que não lhe pertence! Oh senhor! Leva de nosso meio essa besta do apocalipse! Sai exu traça rua! Xô satanás! Muitos dos irmãos interpretaram aquele “satanás” sentenciado pelo nobre ministro da fé como um prenúncio daquela fatídica sexta. Após o culto a vizinhança teceu inúmeras elucubrações acerca daquela sessão de descarrego, Foi fora do normal! Nunca vi coisa igual! Era o tal Exu mesmo. Queima ele senhor! Mas para D. Neiva aquilo fora obra de Cristo, estava ela mais leve, aliviada, o encosto enfim a deixara em paz, estava sem pesos. Ao menos até o desjejum da tal sexta-feira.
Muitos comentários indecorosos sobre a idoneidade daquela mulher foram propagados entre a terça-feira do descarrego e o fatídico dia de seu entrever com o carrasco. Afinal uma mulher direita não sucumbe às verves do demônio. As sentenças eram muitas e sortidas, maléficas e menos maléficas, umas com muito outras com pouco veneno, mas sempre com a peçonha nos caninos. Mas Deus dá seus avisos, inclusive os morais, e tal evento sanguinolento mudou muita coisa. É... as coisas mudam e junto delas as pessoas.... Pessoas são mundanas.
Curiosos transfigurados em defensores da justiça de sua própria casta às suas próprias sortes concediam entrevistas como quem concede uma relevância, relatando devaneios sobre a dignidade daquela senhora dedicada aos filhos, mãe solteira, mas zelosa, pobre, mas preocupada com a educação filial e que jamais deixara faltar algo em casa. A imprensa os disputava como cães a urinar o território, quem tinha maiores, ou quaisquer, informações, mesmo que desprovidas de conteúdo ou verossimilhança, sobre a infeliz sanha que aplacara aquele exemplo de exemplar humano de nome Neiva. sentado à poltrona à luz do sagrado jantar o expectador médio brasileiro necessitava saber o desenrolar do novelo, como novela que não se pode perder o fio da meada.


Entrevista concedida à rádio Jovem FM por Seu Manoel do armazém três semanas após o crime:

- D. Neiva tinha sessenta e três me parece. Mas tinha uma aparência jovial, sempre brincando, saía pra dançar no fim de semana, bagunçava... Apesar do pastor Herculano reprová-la nisso. Isso era ela mesma que me dizia. Era alegre com a vizinhança. Trabalhava muito, vendia bijuterias na vila. Suas “jóias raras” segundo ela, mas falava isso pra fazer graça mesmo, era brincalhona (rsrs). Mas vou te falar... A mulherada da vizinhança adorava essas tranqueiras viu! Com esse dinheiro ela sustentava a casa toda, era luz, água, telefone e aluguel. Fora o mercado! Que era seu filho mais velho que fazia. O Alfredo. Na semana que aconteceu o ... o ... o .... nem gosto de falar viu! Bom naquela semana ela andava se aconselhando demais com o tal pastor Herculano. Ele a recomendou que evitasse as tentações, principalmente porque ela, com aquela idade, deveria servir de exemplo pras moças mais novas da vila. Deveria se dedicar mais à família, Mais! Aquela mulher praticamente vivia pra família! Não tinha vida própria! No máximo ia ao baile da terceira idade! Por isso odeio pastores, padres e tudo isso aí. Estão acima da lei! Eles mandam as ovelhinhas obedecem! ( Da palavra “Deveria” à “obedecem” a entrevista fora editada pela rádio por motivos éticos)


Não mais as lágrimas importavam, estava dura feito rocha em dia de outono, o choro não mais que uma água indesejada em dia de sol. A mãe posta. Isso posto, o corpo foi velado após as complicações e demoras relativas ao caso findarem. O IML tardou com a liberação do cadáver. Seu velamento fora feito à principal praça da rua principal do vilarejo, muito próximo às casas amarelo fosco e a meio acinzentada, onde moravam seu João Custódio e Firmina, respectivamente. Eram esperados milhares de pessoas para o cortejo fúnebre. O que irritou muito Custódio que mal pode ver seu futebol em paz. Mas Custódio era gente de bem e bem humorado, sua solução foi abaixar o volume da televisão. Firmina e Custódio foram entrevistados por vários meios midiáticos. O que culminou na aquisição de dois computares financiados em pequenas parcelas a se perderem de vista nas Casa Bahia para poderem ler suas entrevistas e ver suas fotos na internet, algo raro para aquela gente pobre, mas alfabetizada.

Um transeunte que espreitava a localidade havia dias foi denunciado e encarcerado, preso e condenado em júri popular, isto é, pelo arbítrio, não o livre, da população indignada e dos formadores dele. Todos do lugarejo aceitaram a idéia mesmo antes dos laudos periciais serem definitivos. Seu nome, Jarbas. Seu rosto não causava estranhamento naquele povo, sua fisionomia era para muitos familiar, seria ele o antigo entregador de gás, pizzas, jornais, flores, o vendedor de doces ou coisa que o valha, ou outras coisas mais.... e mais.... e coisas... Porém, de verdade mesmo apenas que o assassino fora preso, para o alívio de quem sabe o que diz.
As vítimas da verdade foram se recolhendo pouco a pouco. De D. Neiva ao expectador remoto com seu jantar esfriando a assistir seu telejornal noturno, poucos entenderam, outros nem sabiam mais, outros poucos questionaram seus papéis naquele anfiteatro onde as cortinas se fechavam. A imprensa era simpática ao vilarejo.


Tempos idos D. Neiva esquecida, seus filhos já anciãos e não menos esquecidos, esqueceram-se do ontem e do amanhã, o hoje presente era a única lembrança viva que guardavam e assim o queriam. Para esses quinquagenários o amanhã não era mais tão distante, viviam para a vida viver com eles, até o findar da morte. Contudo havia sim uma lembrança, ou melhor, uma herança materna. Havia uma verdade.

Rodrigo H.

UMA FENDA NO TEMPO


“É chegada a hora do recolhimento. As trevas são
o prelúdio da estação vindoura, cada
gato delgado cobrará sua destreza felina em prol
do paladar insatisfeito”





Cinco de Janeiro de 1994, Sr. Santos acordou às onze horas como fizera religiosamente desde o começo do verão. Notou à sua volta inoportuno chão turvo, mas não de uma turvação inanimada, de materiais como o pó e a sujeira de porcos... A razão transfigurara sua qualidade momentânea ao sol que, ao adentrar à janela da casa, deparava-se com um obstáculo, a velha cortina que sua mãe lhe presenteara em razão de seu aniversário doze anos antes.
Ao desjejuar pairaram-lhe a meditação do não-pensamento e a contemplação dos prazeres palatais e visuais, tal inação abriu-lhe uma fenda no tempo, onde a satisfação sensível era a única forma digna de realidade vital, um gozo austero raramente percebido, inúmeras vezes experimentado em vida. A cortina foi aberta com uma rapidez inebriante deixando a luz do dia entrar a ofuscar-lhe a visão. O tempo parou em sua breve ofuscação ocular, Que deleite aquele! Os sentidos são a manifestação da alma em vida! Santos assumiu tal idéia num súbito irracional, pois quanto à questão da alma tinha sérias dúvidas. As premissas de futuro quando se é jovem são evidentes e invariavelmente contundentes. Era tempo acordar.
Ao recuperar-se de tal sublime quimera, um distúrbio prazeroso de percepção externa, tivera a mesma visão de anos abrindo aquela janela, os mesmos pássaros (andorinhas, pardais e pombos... e como tinha aversão aos pombos!), as mesmas árvores, os mesmos transeuntes se aglomerando e poluindo seu campo visual. Recordou-se do que experimentara ao acordar e deleitou-se com aquela vista do passado próximo, um pretérito perfeito que não se esvaíra de suas sensações e perduraria durante todo o dia se assim fosse preciso, mas... “Viver não é preciso...”
Bem ao fundo daquela turva paisagem avistava-se o mar, este sem nenhum sentido poético-venerável para nosso amigo. O mar simplesmente estava lá compondo pictoricamente a paisagem, que, aliás, não era de bom-grado a Santos o conjunto dos elementos de tal obra. Porém desta vez notou ele uma figura alheia àquele turbilhão caótico-físico, um exemplar feminino quase metafísico, uma hipótese não descartada dada a distância entre ele, aquele corpo e seus óculos de correção, quebrados dias antes por um soco que levara de um policial que o repreendera por uma dessas diligências policiais acerca de meios escusos.
Santos faria uma constatação, um fio de esperança fez-se notar passageiramente em seu ego.
À porta de sua casa teve medo e, titubeando, abriu-a de supetão! Que prazer foi-lhe imprimido ao deparar-se com os porcos que, como de costume, aporcalhavam-se em um terreno contíguo, a lama estava pronta para um bom mergulho...
A rapariga encontrava-se beirando o mar naquela vastidão oceânica, a distância era tal entre ela e Santos que ele às vezes a perdia de vista dada a ínfima percepção de seu corpo às ondas. Sorrateiramente Santos esgueirou-se por entre aquela sua paisagem de calafrios quando vista da janela, ia assim ao encontro de tal figura ausente de sua vida. O caminho era árduo e os obstáculos breves, um espaço curto de areia quente por causa do sol, e nada mais.
Ela não o olhou, e tendo lha dito bom dia ela respondeu:

- Bom dia! , e nada mais...

Ela não o olh... “Malditas convenções! Todos as dizem: Bom dia, tarde, noite, sorte, aliás, fora o que disse minha mãe, a mim, quando daquela prova com lagartos e outros répteis, o resultado? Os lagartos venceram... Boa sorte! MALDITOS SEJAM! Porque não ”Boa morte!” ao invés de “Meus pêsames!”? Hipocrisias, hipocrisias, hipocrisias!
“Feliz aniversário!”, poderia não ser feliz, quem se importa? Mas ele insistiu:
- Meu nome é Jaime, de sobrenome Santos, muito prazer! (silêncio) da minha janela vejo todos os dias a mesma paisagem. Imutável. Hoje percebi que a senhorita a havia invadido e resolvi ver se não estava enganado, se isso tudo não era uma obra de minha visão, estou sem meus óculos e... Uma miragem entende?
- Entendo!
- Qual é o seu nome?
- Serafina.
Ela não virou-se. Respondeu, mas não se virou. De costas era uma bela mulher, - Uma infame mulher! - estava condicionada pelas convenções sociais. Provavelmente não queria aquele homem ali a estorvá-la, mas respondeu, “Bom dia!”, são regras básicas de educação e dos bons costumes
“Malditas convenções! Bom dia... que infâmia! Sejamos infames!”, ela não se virou.
Santos sentou-se às suas costas.
- Serafina? Nome de anjo.
- Não!
- Não o quê!
- Não é nome de anjo. Apesar de não terem sexo, anjos têm nomes masculinos, Gabriel, Miguel... Entende? O nome é Serafim, e não é nome pessoal, é um tipo, Serafim é uma denominação para um determinado tipo de anjo.
- Porra!
- O quê!
- Desculpe!
- Por que você disse isso?
- Não sei! Posso encostar minhas costas nas suas?
- ...S...s...sim...

Santos deleitou-se com uma sensação inesperada, uma voluptuosidade quase tântrica ao som bravio do mar. Um cheiro inexato penetrava-lhe as narinas, um odor salino adocicado com o perfume da pélvis feminina, expostos à maresia de uma tarde tropical.
Santos atordoou-se com pensamentos acerca das convenções sociais, onde se ateve por um longo tempo... Recordou-se dos deleites sensoriais experimentados pela manhã, quando do desjejum, e passou a contemplar o que para ele era lugar comum, a visão do mar.
O que acabo de descrever parágrafo acima pode parecer dúbio, quiçá ambíguo. Todavia é sabido que o mar não tem olhos e que tudo o que ele vê, vê com os olhos de Iemanjá e de Rei Netuno. Talvez por um ou outro olho estrábico de alguma ninfa, mas dele próprio não!
Ficaram por horas ali sentados, acostados um ao outro sobre a branca areia, sem pronunciarem um advérbio sequer. Serafina vestia um biquíni de cor negra que exaltava suas formas mais singulares, despreocupada daquele estranho indivíduo que lhe abordava num devir, parecia inofensivo. "Uma formiga! Dou-lhe meu nome e nada mais!".
Ao principiar o ocaso Serafina solta um suspiro de contemplação.
- Santos né?
- Hã!
- Seu nome é esse! Santos, não?
- Sim! S...s...sim, SIM.
- Fuma?
- Não obrigado!
- Pois deveria.
- Por quê?
- Não sabes o quão prazeroso é...
- Mas e o câncer?
- Como assim?! Que câncer?
- O seu.
- Mas eu não tenho oras!
- E se tiver.
- Não tenho!
- Mas, poderá ter.
- Não tenho e pronto!




Um silêncio sepulcral imperou durante horas, Santos parecia impávido, ao contrário de Serafina. Não era isso que ela esperava de um flerte. O homem começara tão gentil chamado-a indiretamente de anjo e agora vinha com essa história de câncer. “Que absurdo!” Mal a conhecia.
Após horas, já pela noite.
- E você tem?
- O quê?
- Câncer?
- Não sei.
- Já foi ao médico?
- Não gosto de médicos!
- Pois deveria ir.
- Mas não vou!
- Sabia que daqui poucos anos, na nossa velhice, teremos grande propensão a desenvolver algum tipo de câncer?
- Não. A única coisa que sei é que todo dia quando acordo, abro a janela e vejo a mesma e infeliz paisagem a me torturar com coisas repetitivas. Desde o começo do verão é assim. Vim aqui para descansar, tirar férias da mesmice da metrópole, e o que encontro? A mesmice da praia. Pelo visto você é muito bem informada. Estuda?
- Não, parei no colegial. A julgar pela voz e pelas costas, você deve ser um belo homem.
- Não, não. Eu tenho uma cicatriz no nariz, quer ver?
- Não!
- Ora que mal tem?
- Não quero te olhar nos olhos!
- E porque não?
- É difícil ver a verdade no olho masculino. Mas vocês têm uma facilidade em demonstrá-la.
- Qual o problema? Já teve alguma decepção ocular?
- Que papo é esse?
- Então porque não me olha?

Um novo e rígido silêncio veio abater aquelas duas criaturas, acordaram então que não se olhariam de frente. Serafina mergulhou mar adentro sem se despedir de Santos, ele a aguardou por um longo período, mas como ela não voltou Santos resolveu se recolher, já era noite longa e o sono era convidativo a belos sonhos, desejou sonhar com o rosto de uma ‘anja”, quanto a Serafina, não te preocupes, era exímia nadadora, vivia desde os quinze naquela praia, aos vinte e cinco era guarda-vidas, hoje aos trinta e dois não era dada a esses afazeres, mas ainda adorava nadar, mesmo que pela noite, quando não se vêem ondas quebrando, se exibia na alta estação praticando seu exuberante nado borboleta, os turistas se punham boquiabertos.




Na manhã seguinte Santos já não se importava com sua paisagem alheia, teve um sonho premonitório, onde Estado de Minas Gerais era açoitado por um golpe arquitetado por uma milícia de direita, apoiada pelo exército brasileiro e pelo Pentágono, que tornaria a região independente do Estado Brasileiro com interesses econômicos em tomar os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo para obter saída ao mar e tomar de assalto a bacia de Campos e as regiões de extração petrolífera nos mares desses estados. Narrou tal epopéia onírica ao atendente da padaria onde resolvera tomar seu café da manhã, ou melhor, das onze e cinqüenta e cinco da manhã. Como era de se esperar atalhou o atendente:
-E pra beber? Suco de laranja?
- Garapa. Com limão e açúcar!
Logo ele que não era contar suas intimidades fora fazê-lo logo ao moleque da padaria.
- Troque a garapa pelo suco, por favor!
- Ih! Agora a cana já foi debulhada doutô!
- Tá!
Não poderia tê-la tomada, sua diabete poderia se descontrolar – E o câncer? - Será que tinha? Voltou num desvario hipocondríaco à sua casa e ligou ao seu médico em São Paulo.
- Como é possível descansar? Praia de merda! O câncer que se foda!
Cerrou a porta com tranca para que os porcos não adentrassem seu aconchego nu. Era assim que Santos se sentia, nu. – Não deveria ter contado o sonho ao rapaz da padaria! - Voltou à sua diversão em olhar suspiros de um mar antipoético esgueirando-se entre um emaranhado ondular de animais luxuriosos. Ligou sua velha vitrola, herança de um seu tio-avô, e colocou para rodar seu único vinil de jazz que adquirira num sebo da região central da megalópole. Dizzie Gillespie e garapa eram das poucas coisas que ele apreciava. Ao som de "November afternoon" tornou a buscar por seu anjo sexuado, ou melhor, sua “anja”.
- Bom dia!
- (Raios!) Bom dia.
- Não te vi ir embora ontem!
- Mas você não queria me ver.
- Não queria te olhar, é diferente.
- Como diferente? São sinônimos!
- Pra mim é diferente. Veja que ainda agora não te olho, mas te vejo claramente.
- (Uma mulher inteligente essa hora! É muito pra mim. Agora só falta eu me apaixonar). Fui pelo sono.
- Mas só fui dar um mergulho!
- Foi o sono.
- E o câncer?
- Não tenho.
- E o médico?
- Não fui. Oras! A fumante aqui é você.
- E a cicatriz?
- O que tem?
- Como está?
- Da mesma forma, quer ver?
- Obrigada, cicatrizes me arrepiam.
- Porque esse nome?
- Minha mãe.
- Ela era mística?
- Viu numa novela em que sua atriz predileta fazia uma personagem que levava esse nome.
- E você gosta?
- De novela?
- Do nome.
- Me acostumei.
- E as pessoas?
- Não sei.
- Eu não.
- Não gosta do meu nome?
- Das pessoas. Mas se já te comparei com uma anja!
- Então qual o porquê da negativa?
- Não gosto da situação. Sair de casa...
- Não saia então!
- Não posso. Preciso te ver.
- O que sentes?
- Amor.
- Por mim?
- Sim. E tu?

O silêncio de Serafina o fez concluir o contrário do ditado popular.

- De onde você é?
- Daqui.
- É caiçara?
- Não exatamente.

O poder sensível de Santos não era dos mais apurados.

- Tive um sonho.
- Comigo?
- Nunca vi teu rosto. Não. Conhece Minas Gerais?
- Estive em Varginha certa vez, a cidade do E.T., dizem que região é mística. Crês nisso?
- No meu sonho, Minas era tomada por um golpe de estado e se tornara independente do Brasil, mas dependente do golpe.
- Eu sou independente. Mas os separatistas não eram os do Sul?
- E os reacionários do sudeste. Posso te olhar?
Palpitavam ferozes as artérias de Santos, e ao caminhar solitariamente pelas alvas areias, olhou pra trás, Serafina se indo, ele sem seus óculos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, Serafina ia, ele ia, iam. Serafina se virou o olhou e mergulhou nas águas oceânicas. Já tardara a noite e o mausoléu Santos não ouvira mais os roncos dos porcos. Seu mármore de carrara, sua construção, seu vão aconchego, seu fim no começo, sua eterna cópula solitária, infertilidade outonal. Visões de um paraíso ferido e distante, multiplicador de si, em si mesmo. Seu câncer.

RODRIGO H.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Tema 10 - Chá das cinco

16:58
Senhoras se encontram,
Cumprimentos tímidos,
Beijos no rosto.

Cada uma em seu lugar preferido,

17:00
- Earl Grey, por favor.
- Camomila, hoje quero relaxar.
- Preto, com um pouco de leite, aprendi com vovó.
- Verde, li por aí que emagrece.

17:05
Frivolidades correm
Soltas.
- Será que a Flora morre no final?

17:32
- será que a rainha está nos acompanhando em Buckingham?
- Claro! Ela não perde o chá das 5!



LUCIANO

Tema 10 - Chá das cinco



O Puro Nu



Entrou na sala com seu traje de gala, a tarde ainda era pouca, esperaria até o início do evento, colocara-se só sentada ao centro daquele ambiente de luz turva apesar do externo sol escaldante do verão tropical. Nenhum samba, nenhuma ode a si mesmo, nenhum nada, ademais daquela luz gótica a adentrar o recinto entre as fendas das cortinas semi-cerradas. Não havia ninguém na casa, adaptou-se bem à plena solidão da desintegração familiar, despiu-se em frente à janela ainda acortinada, abriu o pano deparando-se com verde mar defronte, desejou mergulhar nua na primeira onda que quebrasse em seu ventre opaco de aborto juvenil, quando do complemento de seus dezessete anos, quinze anos antes. Pernóstica, vislumbrando o mundo além de si, percebeu-se como quem vê o resto, o externo era ela além do mundo, um olhar apurado para o que não se explica por vãs palavras, vãos pensamentos fúteis sobre a beleza ou a estética como filosofia moral, nada apesar de o nada sempre estar próximo de sua representação físico-corpórea, presente em suas relação amistosas, em seus passeios urbanos, em suas refeições vegetarianas, em seu café, em seu eu.

Fugiriam-lhe as palavras do que fora recebido pelo olhar e toda conotação explicativa do que é perceber o mundo pela pele, o tato é um justo sentido quando do sexo ou da dança, contudo furta-se o conhecimento ao abrir dos olhos, ao ruído de qualquer manifestação súbita de ente natural doentio. Era nudez de roupa, não de vaidade, o espelho lhe sorria, era bela mulher de trinta e dois anos, delgada como a moda e a medicina lhe disseram ser ideal, assim era melhor, não passaria vergonha ao adquirir vestido ou roupa íntima, para tal definição física nunca fizera nada além de sua dieta vegetariana o que pra ela era natural, desde pequena rejeitara qualquer tipo de carne, apesar de os avisos paternos, O cérebro humano é um órgão muito exigente, ele só consome proteína, e sabes onde encontrá-la? Já crescida e com as palavras que seu pai repetia toda janta, no almoço era cada um por si, matutando em sua mente, o costume lhe fez degustar peixe, toda semana, na sexta-feira, havia um peixe diferente, linguado, tainha, salmão, robalo, cação, dourado, tudo de acordo com o conselho do peixeiro, Peixe deixa a gente astuto sabia? Sabia, se até Jesus multiplicou peixes e pães, sabia tudo, mas nunca soubera o prazer da nudez desinteressada. Dirigiu-se à cozinha, apanhou a leiteira de alumínio, asseou-a com água lavou-a um tanto mais com detergente, encheu-a até a boca com água e acendeu o fogão, deixou o escasso líquido exposto ao calor até chegar aos cem graus celsius. Ferveu como aquela tarde, Alô! Suzana? Letícia? Oi amiga, ta em pé ainda, Sim claro, esteja aqui às cinco. O dia passou, a água esfriou, não saiu de casa o tempo todo, leu futilidades, atendeu outros telefonemas, outros camaradas, assistiu TV, foi à janela, na internet pesquisou sobre praias de nudismo nas cercanias de sua casa, nada encontrou, continuou nua até às zero horas quando um vinho abriu seu apetite pela vida, comeu salmão, era sexta-feira de salmão, salmão fazia bem, melhor que alface, melhor que feijão, Viva o salmão! Gritou de si para si, os vizinhos, os que não tinham caído na noite, dormiam, despreocupada com isso ligou o som num volume acima do médio, quase alto, era uma música frenética meio eletrônica, meio acústica, uma nova loucura da pós-modernidade, correu ao armário a procurar seu vestido prata que ficava colado ao corpo exibindo o que ela adorava exibir, sua auto-suficiência, vestiu-se, dançou, se divertiu na companhia da bebida dos deuses e dos padres, Ouviriam os sacerdotes música alta dentro dos mosteiros à meia noite regados a vinho e vestidos prateados? Quem sabe... Cansou de seu óbvio ululante, ainda vestida e embriagada tentou abrir o chuveiro, por duas vezes escorregou, caiu, cochilou ali mesmo por alguns minutos, arrancou o vestido e ligou seu banho, deitou-se sob água fria deixando-a cair sobre a cabeça, passou a embriaguês, ela deduziu, secou-se e nua se deitou no meio da sala com a janela aberta às duas da manhã, o vento soprava refrescante casa adentro, sentiu prazer ao ser tocada por ele nos pés, pernas, púbis, ventre, seios, pescoço, rosto e sentiu seu cabelo cada vez mais seco com suave perfume marinho.

A campainha tocou, levantou-se do chão, eram quatro e meia da manhã, com sua vaidade exposta dirigiu-se à porta, no caminho tropeçou, caiu, levantou, o vinho ainda estava em sua companhia, O que é isso Su! Mas Letícia ainda é madrugada, o que faz aqui? Esqueceu do chá, eu já dormi assim, é bom, Hã, do que está falando Leca? Mas para abrir a porta no mínimo uma calcinha né, Ah é, é bom sabia, porque não experimenta? Em casa eu também fico assim de vez em quando, Mas porque não experimenta agora? Como assim? Sem malícia, experimente ficar nua comigo vamos, Nua, nua? Peladinha, isso, vamos tire essa saia, essa blusa, Mas os rapazes vão chegar logo! Ah é, o chá né? Esqueceu que tínhamos marcado às cinco né? Esqueci, to de ressaca, Saiu ontem? Não, tive um instante de auto-conhecimento regado a vinho e solidão, Ta explicado, então vá se trocar que o pessoal já está pra chegar, Não, tire a roupa! Como assim? É isso mesmo, tire, decidi que todos ficaremos nus, quero medir a coragem dos meus amigos, Ta bom louca, Letícia ficou nua e foram ferver a água, eram esperadas mais cinco pessoas, três homens e duas mulheres, Chegaram! Será que falta alguém, não importa, não gosto de me atrasar.

Espantados com aquelas garotas nuas dois homens não entraram, tiveram receio, medo, desejo, vergonha tudo ao mesmo tempo, à exceção de Célio, Nuas vocês são ainda melhores sabiam? Sabia, Eu não, sempre tive celulite, Letícia era mais uma dessas mulheres complexadas com o corpo apesar de sua beleza estrutural, Pois as duas são lindas, cadê o resto do pessoal? Acho que seremos só nós três, Carlos e Jurandir fugiram como você pode testemunhar, Janaina e Beatriz mandaram uma mensagem pelo celular dizendo que estão indo dormir, beberam muito na balada. Apagaram o fogo, o chá estava pronto, tinha pra vários gostos, mas todos acharam mais prudente tomar o de camomila pela eventualidade da nudez coletiva, Sabe como é né, melhor prevenir do que remediar, a essas palavras de Célio Suzana levantou-se para pegar umas bolachas caseiras feitas pela avó que a visitara na semana do natal, ela quem lhe disse acerca das praias de nudismo da Paraíba e ao que parece ficara latente em seu subconsciente, Célio quer bolachas? Por favor, Pra mim também, disse Letícia, na normalidade daquela formalidade amistícia Célio bebeu, Letícia bebeu, sentados no chão ao redor da mesa baixa, às cinco e trinta e dois, brindaram à naturalidade da pureza sensual, nus não haviam o que esconder, ao ver a marca na bunda de Célio, O que aconteceu? Apanhei, Mas porquê? Nada demais, Mas está roxo Célio! Eu pedi, calaram-se as duas, beberam outros goles, o chá esfriara um pouco, Querem Mais? Eu quero de erva doce, tem? Eu também replicou Letícia, Leca me ajude com a água, pretexto esse para uma rápida fofoca, não sabiam elas que homens também gostavam de apanhar, Um tapa de leve ainda vá, mas deixar o outro roxo é demais, “O poeta é um fingidor/ Chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”, Era assim a estrofe do Pessoa? Ah Leca como vou saber dessas besteiras poéticas deixe-me cá com minha nudez, Precisa ler Nelson Rodrigues, Preciso é esquentar essa água, me passe o bule! Estranho o Célio não, eu não o conhecia muito bem, Eu também não, Demoraram meninas, Célio Você é gay?

O sol fez o dia amanhecer estranho, um mormaço insuportável, após um mergulho na praia Célio voltou ao seu velho karmanguia e pegou a estrada para São Paulo, Letícia adormeceu ainda no sofá da sala, seus seios pendendo para lado direito não deixaram Suzana dormir em paz, estava em dúvida se lavava a louça ou ajeitava sua amiga no sofá, o chá que iniciara às cinco terminou culpado pela transparência na dúvida humana sobre o humano, o café da manhã não foi servido, Letícia se foi antes do início do entardecer posterior enquanto Suzana ainda dormia, acordou às dezessete horas, banhou-se, vestiu-se e ligou para Célio, ao pedir desculpas, Por isso sempre neguei encontros furtivos com as mulheres, vocês sempre querem saber mais do que necessitam, Estou arrependida Célio, venha pra cá no fim de semana para esclarecermos a situação, Não, pra mim já está tudo bem claro, tem a noção do constrangimento que me fez passar? Sua retração não lhe permitia dizer o mínimo que se diz sobre as paixões masculinas a uma mulher, acabou sua esperança de continuidade da espécie, desde a adolescência Suzana fora o amor de sua vida, ao vê-la despida, impudica e sem malícia, deixou de desejá-la, deixou de querer dizer o que sempre quis, deixou de querer despi-la, alterou sua vida num rompante de clareza, desejou Letícia, Suzana despida era a imagem do fim, era o que faltava, o chá. Já bebera cerveja, cachaça, refrigerante, café, uísque, suco, mas chá era a primeira vez, E nua!

Suzana e sua auto-suficiência não foram suficientes ao baque, supriu a ausência com maquilagens diversas, gastanças no shopping e bebedeiras com as amigas, trocava de homem quando lhe dava na telha, mas o vazio ficou. Jamais quis saber de praia de nudismo novamente, pegou asco a chá, e se não estivesse sonhando antes de às cinco badaladas do relógio não mais sonharia. Nua agora só no chuveiro e no escuro, aprendeu a ler Pessoa, pois a leitura se aprende assim como se aprende a comprar, a beber ou dançar, a leitura deve se fixar no cotidiano, para que o cotidiano viva a leitura junto da cerveja, do mar e das trevas.



RODRIGO H.

Tema 10 - Chá das cinco

Camomila


Alice levanta seus braços antes mesmo de abrir os olhos, de modo a esticar todo seu pequeno corpo, se espreguiçando contra a árvore em que se encontrara encostada, finalmente terminando o que talvez fosse um dos mais estranhos e envolventes sonhos que já tivera.


Ela ajeita e desamassa seus curtos cabelos pretos, abrindo seus olhos castanhos, ainda levemente aturdidos pela forte luz do sol. Ela olha confusa ao seu redor, sem conseguir se lembrar de ter se perdido tão profundamente no sono, ainda mais recostada à sombra de uma árvore.


Não uma garota urbana como ela. Em seus rápidos pensamentos, a primeira idéia que lhe passa é a de ter sido abduzida por algum estranho, como a realidade inescapável do destino que sua avó pregava quando viva, tão veementemente, em toda vez que falava sobre os perigos da noite como ferramenta funcional para manter a neta em casa nos finais de semana à noite.


Ok. Noite. Ela se lembra de ter saído, ela se lembra de ter bebido. Um pouco mais do que devia, ela confessa com certa culpa a si mesma. Mas até ai, ela sempre se julgou ‘forte’ para bebida, ao contrário das suas amigas que mal conseguiam segurar algumas taças de vinho dentro de seus também pequenos corpos. Alice busca em sua memória o garoto alto de cabelos castanhos e franja com quem passou grande parte da noite passada, e tenta isolar em sua mente qualquer momento especial onde ele possa ter lhe passado algo, um drink, uma droga que fosse, sem que ela percebesse.


Mas coitado, entre os beijos eles mal se falaram, e o cara nem bebia, todo cheio de pruridos fora as evidentes mãos bobas já esperadas. Não, ela conclui que deve ter sido algo depois. Algo entre aquele ‘What You Waiting For’, mas na versão com a melodiosa voz do Kapranos, e a leve recostada no sofá de estampa de zebra, numa súbita sensação de cansaço, a moleza inesperada em suas pernas.


Foco. Alice olha ao seu redor e realiza que se encontra sozinha em um infinito campo verde, aparentemente bem, sem nenhuma marca que remetesse a perda de um rim ou qualquer outro órgão de seu corpo. Seu celular, fora de área, repousava inerte em seu bolso, e ao seu redor, árvores espaçadas em um campo verde que vai até onde sua vista alcança. Inabitado. Como um filme de ficção científica.


Ficção científica definiria bem para Alice, o coelho que para em seus pés, trajando terno e monóculo.


Você sabe que morreu, certo?”


O pânico de ouvir um coelho falante, tira todo e qualquer foco ou atenção e toma uma importância bem maior do que exatamente ele disse, transformando as pernas de Alice em duas varetas de gelo. Porém, o suor frio e a incapacidade de se mover desaparecem frente a um forte cheiro de.. chá?


Haha. Que choque! Mas eu realmente sairia daí se fosse você, afinal, são cinco horas, o tempo urge!”


Alice ainda em óbvio choque, sem conseguir processar as palavras que o coelho profere com seu espantoso sotaque inglês, sente algo bater em seu calcanhar, o que a faz se virar, apenas para ser surpreendida por uma enorme mesa de chá. A toalha, de tão branca, ainda exalava um odor de limpa, mesclada com o saboroso cheiro de doces e bolos que eram apresentados de forma a cravar inveja na alma de qualquer vitrinista de confeitaria. Observar aquela mesa posta remetia a Alice memórias de uma época mais simples na casa de seus avós. Não que seus avós fossem coelhos ou tivessem sotaque britânico, claro.


Não que ela sentisse qualquer tipo de culpa pelo que fizera anos atrás, apenas um leve sentimento de remorso por dias perdidos e só. Tudo era uma questão de dúbios pontos de vista e o impopular descontrole emocional, mas sob sua impecável noção de certo e errado, Alice sempre preferiu se encaixar na primeira. Quando as coisas acontecem rápido demais, se perde a objetividade. Ninguém pode se culpar por algo feito quando claramente se estava fora de si. Seus avós não deveriam ter sacrificado seu coelho de estimação, em favor de um suculento guisado em uma noite fria de inverno. Talvez, dessa forma, ela não os teria assassinado após a sobremesa.


Mais um gole de seu Earl Gray enquanto os coelhos em sua volta exibem uma predileção por camomila. Ela não gosta, apazigua. Enquanto ela os observa e tenta imaginar quão apurado seria o paladar dos seus elegantes companheiros de mesa, Alice saboreia o chá das cinco, com gosto, e uma leveza de espírito que se exprime em um suspiro profundo antes de mais um gole. Ela realmente não sabe onde está ou se está sonhando, mas em seu chá, ela encontra uma tranqüilidade impar. Porque ela deveria se preocupar?


ANDRÉ OZ

Tema 9 - Não me contes o que passou...

Karen


Uma noite na noite
Não esperava te encontrar
A pista parecia diferente,
menor..
Pra que eu pudesse me aproximar

Debaixo dessas luzes,
singela perfeição.
Graça, estilo, dança. E um sorriso
que atiça, atrai olhares e tira
os pés do chão.

Eu não sei quem você é,
Não me preocupa não saber
O que se passou até aqui
Só me interessa te ter..

..e chega a ser engraçado,
dos seus olhos desviar
Estar colado ao seu lado,
fingindo dançar,
e fugir do seu olhar.

Mas é parte de um jogo
Que termina ao te encontrar
Seu corpo encontra minhas mãos,
você finge que não,
mas a mordida nos lábios
Entrega seus planos.

Eu não sei quem você é,
E eu prefiro imaginar
Quem você foi até aqui
Em um nome, um suave
sussurrar.


ANDRÉ OZ

Tema 9 - Não me contes o que passou...

Não me contes o que passou
quando estivestes fora,
quando fostes e eu fiquei.

os momentos em que
deixamos de ser um, juntos,
para sermos dois, separados.

tuas experiências
aleatórias.

seguistes tua vida,
segui a minha.

Não me contes o que passou
é passado,
não importa mais.



LUCIANO

Tema 9 - Não me contes o que passou...

O Totem Eterno







-Um engodo! Eis o que sois. Um engodo.


Anos antes da fala proferida Joelmir ganhara um prêmio, trinta e cinco milhões em moeda estadunidense pela loteria federal, Ganhei! Trinta e cinco milhões! Que maravilha! Ele um operário da indústria de calçados em franca expansão no período do milagre econômico brasileiro ganhara um valoroso prêmio, não quis saber sobre as vacas gordas que assolava o país, poderia largar tudo, largou emprego, casa velha, carro velho, velhos amigos, velha família, cachorro, esposa, sogra... Esposa? Vais me largar Joca? Não posso crer nisso! Meu deus olha o que o dinheiro faz com a integridade do homem. E seus princípios? E as juras de amor? E o compromisso selado diante do padre? Não me digas que virou da macumba também? Pois esses macumbeiros que têm mania de ir à Bahia falar com Oxalá ou sei lá o raio que o parta!, Joca iria à Bahia realizar seu antigo sonho de ver as belas praias do norte, assim se referia ao nordeste brasileiro, terra natal de seu bisavô, onde o sol sempre brilhava e as garotas andavam quase nuas, o carnaval era mais que uma carnificina e a comida apimentada era um elixir, uma ode a Eros. Um momento! Mas e a esposa? Acabou Ana! Acabou. Não quero mais! Vou sair, vou ver o mundo sem ti, partiu no dia seguinte rumo às praias baianas a começar pelo sul do estado, pretendia ir até a costa maranhense, quanto ao divórcio seu advogado resolveria tudo, não mais esquentaria a cabeça com Ana, afinal de contas eram dez anos ao seu lado, mas são dez anos Joca! Dez anos! Como pode! Vai jogar tudo assim pro alto por causa de uma viagem ao nordeste? Vou, Se você for será o dobro de gasto, gastando assim como poderei abrir meu posto de gasolina em Ilhéus? Posto em Ilhéus! Mas você nunca me disse nada sobre isso! Inventei agora, acho que será um bom investimento e não precisarei mais ficar colando sola de sapato pra capitalista nenhum, serei meu próprio capitalista, E quanto a mim? Fique tranqüila, terás uma gorda pensão, e saiu deixando Ana chorando ao telefone cujo choro sua mãe Jacinta consolava do outro lado da linha, E tem outra! Diga a sua mãe que vá pastar! E que nunca mais irá me encher o saco por causa de emprego! Passar bem.


Ana trabalhava em casa, sua renda se resumia a alguns doces que confeitava para festas infantis, a pensão seria uma maravilha para ela, não precisaria mais trabalhar, compraria novos vestidos, viajaria também e quem sabe não abrisse um comércio qualquer para que o ócio não lhe consumisse a alma, aliás teria mais tempo pra se dedicar à igreja e a ajudar os pobres coitados do bairro, cuja culpa lhe consumia a reza todas as noites para que deus lhe absolvesse o espírito, seu coração era bom, o problema era tempo para a caridade, “Ele morreu para te salvar”, estava grafado em sua porta. Durante semanas Ana mal comia, tomava coca-cola, disso não havia Santo Expedito que lha salvasse, o sono é privilégio para quem cansa, como não mais trabalhava, não se cansava, resolveu que sua alma seria salva pela abdicação ao repouso, fazer desnecessário a quem nesse estado assim está.

Seu sofrimento não alcançara dois meses, quando do recebimento da pensão espontânea de Joca, Cinco mil dólares por mês! Muito, bom, muito bom... Mas ainda está pouco, bom, porém pouco minha filha, Mamãe! Não seja boba Aninha, eu se fosse você lhe arrancaria até o calção, Eu tenho índole mamãe, a senhora sabe o que é isso? Pois eu possuo, tenho caráter, sou dos princípios de cristo, os mandamentos estão tatuados em minha mente, cinco mil dá, sobram e ainda posso me dedicar ao bem gratuito, não é porque Joca está (pois nunca fora) canalha que preciso me igualar, está, pois em dez anos de casamento sempre teve honestidade, Você é tonta, isso sim, o que já recebeu de deus até hoje? Um casamento arruinado por um bilhete de loteria cujo dinheiro não verá nem a metade, Não discuto com descrente, lamento.


Foi à Bahia, de tudo o que viu o turismo sexual lhe foi o mais aprazível, ninfas ao preço de banana, voltaria outras vezes àquele estado para dançar conforme a perdição dos trios elétricos e cantar o doce fado danoso à moral, Moral? Quem liga? E como fica Ana com isso tudo Joca? Ah Marcelo, tome uma e fique quieto! Tome, tome, compre um capeta e vá procurar uma qualquer que te agrade, sai de mim! Marcelo bebeu, bebeu bastante, tão bastante quanto Joca, ao ponto de acordar jogado no meio da areia da praia rodeado de siris a lhe espreitarem o traseiro, Joca amanheceu numa casa para meretrizes, preocupado com a Camisa-de-vênus, Usei? Claro meu rei, sou profissional.


Num período duo decênio, de 1976 a 1996, Ana recebeu religiosamente sua pensão e fez bom proveito dela de acordo com seus princípios cristãos, converteu-se ao neo-protestantismo toteniano, mais conhecido como totentantismo brasileiro, fundando um templo em 1992, Joca não comprou posto algum nem investiu sua gaita em nada, dedicou-se à luxúria e aos prazeres palatais da carne e do vinho, foi fiel seguidor de Dionísio, gastava tudo com quem lhe quisesse ajudar a gastar e consumir, abria a mão para quem lhe honrasse o cumprimento, do desjejum ao uísque matinal, a quem lhe agradasse traduzia os agrados em consumo. Findou, a fonte secou, encontrou Ana em sua “Igreja Petencostal do Totem Eterno”, prosperou, antes pensou em ser missionária no oriente, desistiu, ficou e arrecadou, Dna. Jacinta converteu-se ao totentantismo, recolhia o dízimo, logo apelidado de periódico pelos fiéis mais maldosos, na casa do senhor também há maledicências, fazia a contabilidade do negócio, Joca? Olá Dna. Jacinta, O que houve contigo? Que roupa é essa? Fali, a tempestade veio depois da bonança, Se fodeu! O diálogo deu-se no meio do templo, ninguém os ouvia, a conversa sussurrada, as palavras proferidas por entre as arcadas dentárias, num misto de ódio e pudor, se fodeu gos-to-so! Jacinta ria-se como os infernos, com o coração cheio de auto-piedade e salvação e a bacia aos tostões dos fiéis, Onde está Ana? Que te importa! Se quiser sentar-se fique à vontade, o culto já vai começar, dízimo? Não vê que não tenho nada mocréia? Jacinta novamente riu, A senhora se converteu é? Vá pra puta que pariu! Deleitando-se com a última palavra, Pariu! Num gozo jocoso, onde “pariu” tinha mais peso que “puta”, Deus está vivo, Ele existe e está no meio de nós.


Deu início o culto, Ana linda como nunca e vinte anos mais velha, aos quarenta e cinco parecia muito bem, quase uma obra de deus, Joca nunca entendera os padrões do belo, nunca lera filosofia estética sequer, nem nada a respeito das modas atuais. Foi ao acaso, recebera um panfleto falando sobre o totentantismo e como ele recuperaria as almas e os espíritos (por mais redundante que pareça assim estava escrito) degredados da civilização divina, ao rodapé do papel havia o endereço do templo, cujas instalações abrigavam uma ala para recuperação de adictos, droga e jogo, Joca necessitava ambos, mas ignorava qualquer possibilidade de doença venérea, no SUS a fila para um simples exame sangue já era contada em medida temporal. Ao término do rito, Joca! Ana! Que surpresa agradável você nos visitar, já se foram uns vinte anos, quais as novas? E as andanças pelo mundo? Me perdoe Ana, Águas passadas, Não estou bem, soube que aqui vocês cuidam de dependentes químicos e jogadores compulsivos, Sim, cuidamos de uma infinidade de moléstias do corpo, mas sobretudo as da alma, aqui são todos bem vindos, cheiradores, maconheiros, viciados em crack, em jogo, palmeirense, corintiano, tudo! Sem exceção, ajudamos todos Joca, com você não poderia ser diferente, mas é necessário que passe por provas de aptidão, topas? Tenho escolha? Não, mas me conte sobre suas aventuras, Não me perguntes sobre o que passou, O tratamento começa pela gênese do paciente, vamos diga, mas como já sei de boa parte comece pelos últimos dez anos, Não faça isso Ana, por favor, me expulsaria antes do terceiro parágrafo. Joca fora submetido a um tratamento intenso chamado “Lavagem inforracional”, onde o paciente era exposto a uma carga horária de doze horas diárias de televisão num período de um mês até que perdesse boa parte dos sentidos, no início o coração ficaria na boca e os sentimentos expostos a quem quisesse vê-lo, assim o que não fosse interessante à prosperidade da igreja seria exumado e posto numa gaveta intocável, deram-lhe banho, água potável, comida, roupas novas, à noite sempre havia um sopão e café com água e sal pela manhã, à tarde a enfermeira lhe aplicava uma injeção que o fazia regredir a um estado semi-infantil, como quando os humanos e os símios eram quase parte da mesma raça, sob efeito da droga regressora Joca e os demais adictos cediam à cruzada inquisitória para catequização dos suscetíveis à maledicência, mas ele não cedera aos efeitos psicotrópicos da injeção inquisitória, Joca jamais contou o que passou, mas Ana soube de cada pormenor, em frente à TV ele se diverte com a sortida gama de produções televisas disponíveis no controle remoto, às vezes lhe é liberado o vídeo game, Ana observa tudo pela pequena janela 10cm x 20cm que dá para o corredor, numa idéia horizontal do recinto seus olhos rodopiavam desviando-se do devaneio que seria a lembrança do que um dia foi o amor de sua vida, sua vingança estava fria e pronta, para dentro o mundo só faz quebrar cada vidraça de artéria espontânea, a dor da ausência não finda com o retorno do objeto saudoso, como um rato in vitro Joca ali estava em sua caixinha, nada anormal para a realidade da sociedade capitalista, o que antes caixa de sapato ou prêmio de loteria, agora clínica de recuperação com TV a cabo e sopão, o contemporâneo é assim cada caixa escolhe seu conteúdo descartável em sua quimera optativa em função do próximo passo, num caminho arquitetado sempre antes do primeiro nascimento da geração vindoura, deduz-se que escolhe o que escolheu, Porque te falaria o que passou Ana, em que te importaria minha ninharia egoísta? Joca, eu preciso saber até onde o dinheiro vai me levar, somos muito parecidos, por isso fomos casados, somos o que aqui interpretamos, somos a ausência do que fomos, tudo o que amamos e os amores que não conhecemos, o mesmo resto, o mesmo pó sob as patas do ácaro que te infecta com alegria, minha droga é a droga de deus que a grana comprou, sua droga é a grana que a droga comprou, diga-me, necessito saber!

“Ele morreu para te salvar”, estava assim escrito em todas as portas de todas as salas, inclusive dos banheiros, do templo da “Igreja Petencostal do Totem Eterno”.

RODRIGO H.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Tema 8 - Puteiro

American Bar, Relax for Men


Perfumes baratos
se misturam
com suor,
fumaça,
álcool,
libido.

Alívio comprado,
olhares dissimulados
em direção a
carteiras e
peitos.

tudo tem seu
preço.
oral,
anal...
O que você quiser,
quantas vezes agüentar em uma hora.

menos
beijo na
boca.


LUCIANO