Profissional
Girou a maçaneta dourada em sentido anti-horário, seu vestido era alvo, quase uma noiva, tão linda quanto as noivas mais feias sonham em ficar quando do casório, caminhou a tranqüilos passos elegantemente pelo branco corredor do quinto andar do edifício Marrocos, onde quase tudo era da cor da junção de todas as cores. Sua silhueta chamava a atenção dos porteiros que vigiavam as dependências do prédio pelas câmeras de segurança. Ela caminhou. O elevador parou. Pressionou o “T”. Um andar após entrar a madame com o poodle entrou o senhor da manutenção. O poodle mordeu o Sr.. Fétido e com ferramentas diversas em sua maleta não fez caso ao cão. Desceram no “T”. A portaria parou para olhar aquele belo exemplar feminino. Passou, o perfume ficou. Ela cansada deslizou pelas ruas do bairro em busca de condução, eram sete e meia da manhã, encontrou o táxi. O condutor, um senhor de sessenta anos, dormia no interior do veículo enquanto no rádio um samba-canção de Lupcínio Rodrigues embalava seu sono.
- Olá. Bom dia.
- Bom dia... A senhorita me desculpe, mas...
- Sem problemas, Alameda Jaú 1230, por favor!
- Claro. Gosta de Lupcínio?
- Não conheço.
- Pois deveria conhecer. Lembro-me de minha juventude dos...
- Não gosto de música velha.
Silêncio.
- E das novas?
- Tampouco.
- Mas porque não gosta de canções? Tem tantas belas?
- Pra mim são todas iguais, samba, rock, choro, jazz, eletrônico, quando não são iguais são clássicas, o que me deixa muito entediada. Por causa do meu trabalho que me forço a conhecer algumas delas, o que me deixa com mais certeza de que não gosto de nenhuma delas.
O motorista desligou o rádio.
- Chegamos.
- Quanto é?
- Trinta e cinco reais. Mesmo horário amanhã?
- Meia noite ainda é hoje.
Ao longo da semana muitos clientes ligaram. Contudo andava ocupada demais com um certo príncipe que estava em visita pelo Brasil. Assim como não gostava de música detestava jornais, preferia ler romances, contos, poesias, algo que lhe furtasse a realidade, o que não era possível com as músicas, de maneira que desconhecia o paradeiro de vossa alteza. Fazia seu trabalho e pronto. Autoridades não gostam de sexo, sabia que aquele homem de fala estrangeira não era um mortal qualquer. Uma semana de gala para ela. Não que outras também não fossem, mas quando um serviço desse aparecia era melhor, não tinha sexo. Não escondia de seus clientes que apenas cumpria seu ofício, nem que adorava um boquete, isso era cortesia. Muitos murmúrios a cercavam de lágrimas naquela semana Lauro, seu melhor cliente, havia sumido há uma semana, tempo em que não o via, estava a serviço de vossa majestade. Ademais disso as quintas eram sagradas. Dias úteis, feriado, chuva, sol... se nas férias viajasse voltava na quinta-feira, mas naquela semana ele sumira. Não ligou nem atendeu aos telefonemas.
Girou a maçaneta, a porta se abriu. Apertou o “T”, notou borrada a maquilagem, retocou-a, eram doze andares até o “T”. Contou a grana, eram dólares, não sabia como funcionavam as variações cambiais, sabia que eram dólares e que valiam mais que sua moeda. Chegou. Outros vigias lhe notaram, estava acostumada, eles sempre notam, os homens, vigias ou não, sempre notam. Ela passou. Seu Moreira a esperava dessa vez sem canções e apenas numa pestana, quase em vigília, Toc, toc!
- Bom dia linda.
- Pra padoca Moreira!
- Ele é sheik?
- Sei lá que raios é aquele cara!
- Pagando bem...
- Você aceita dólar?
- Claro!
- Hoje é em dólar ta.
- Qual padaria?
- Qualquer uma. Preciso de um “drink” e cigarro. Tem?
- Quanto você cobra Marília?
- Depende.
- De quê?
- Da cara, do tipo de serviço, do tempo...
- Pra mim mesmo. Quanto sai uma horinha?
- O que você quer?
- Boquete?...
- É cortesia. Trabalho com cortesias, pra conquistar a clientela. Mas o cliente paga o quarto.
- Grátis!
- Teu pau ainda sobe? Senão tem que comprar viagra.
- Sobe.
- Pro senhor faço quinhentos reais a hora, completo, sem beijo! Sabe como é, sou profissional.
- Não tenho.
- Então... Na esquina tem uma, pode parar ali mesmo.
Pagou, desceu. Moreira abriu a janela e a chamou com os dólares na mão.
- Um mês de corrida grátis. Que tal?
- Pensarei. Espere um pouco, não vá embora!
Comprou um maço e voltou.
- Não quero mais “drink” e perdi a fome. Nunca trepei com um velho como o senhor, vai ser diferente.
Moreira sorriu um riso de danças carnavalescas. Deixou-a em seu flat e foi à farmácia.
No dia seguinte era folga de Marília, ela saiu à procura de Lauro. Foi à delegacia, hospitais, IML, quadras de futebol, botequins grã-finos, puteiros de luxo conversar com suas colegas, mas ninguém sabia seu paradeiro. Só não foi ao seu apartamento, mas ainda era terça.
Quarta-feira, três de novembro, meia noite:
- Olha aqui! É uma hora pra um mês de táxi heim!
- Fechado! Pode começar.
- Pô Moreira! Ta pensando que eu sou o quê? que eu sou uma qualquer? Só no quarto.
No quarto:
- Comprou?
- Comprei.
- Então toma! - Moreira tomou a pílula – Já fumou maconha?
- Só cachaça.
- Dá um tapa.
O velho relaxou e dormiu. Marília admirou a cena. Chupou. Nunca havia feito em um homem tão velho! Aproveitou o estado de Moreira e lhe abusou. Imagine só! Velho, quase morto, de pau duro, estuprado por uma puta. Era o que Marília desejara desde o começo da carreira. Estuprou o velhote adormecido, pegou as chaves do táxi. Girou a maçaneta. Desceu pelas escadas, o elevador pifou. À garagem ligou o automóvel branco e se foi. Sem câmeras, sem vestidos, sem homens, quase sem gasolina.
- Completa!
- Álcool ou gasolina?
- Ah! Sei lá!... Gasolina...
- São cento e cinqüenta.
Pagou. O frentista lhe desejou as pernas, mas estava trabalhando. O que se espera de um frentista em serviço? Ou de um taxista? E de uma puta, o que se espera? Trabalhando está bom. A impaciência tomou-lhe o globo ocular, queria achar um polícia, andava por uma estrada para o interior. Onde estaria Lauro? Iria ao edifício Marrocos assim que amanhecesse. Queria muito vê-lo. E se ainda não estivesse lá? Onde estaria? Mas não era afeita a ler jornais.
Beijou-lhe todo, do púbis ao pescoço, Lauro tremia. Ela tremia. Beijou-lhe a boca:
- Na boca não Marília!
- Mas eu te amo!
- O que é isso?
- Me beija!
- Não! Pára! Sem beijo. O que deu em você?
A facada foi certeira. Entre o pescoço e o ombro esquerdo, bem no trapézio. O sangue era um, cercado de glóbulos. Chão era um, lençol era uma, faca era uma, colchão era um, era uma coisa só, um quarto, um sangue.
Banhou-se, perfumou-se, pintou-se.
Girou a maçaneta dourada em sentido anti-horário e desfilou seu vestido branco até chegar ao altar descendente do elevador. Apertou o “T”. Chegou. Desceram poodle, madame e Sr. da manutenção. Apagou Lauro da vida e o beijo e da memória. Apagou o prazer de trabalhar, a gratuidade do prazer, do amor, do prazer. Um desvio, um amor. Esqueceu-se. Esqueceu a conduta. A profissional.
- Quanto é?
- Duzentos e cinqüenta.
- Completo?
- Só oral.
RODRIGO H.