quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Um pouco de sangue e outras verdades


Era dia de morte. Aquele cadáver jazia aos pés dos pés de quem o via. Uma imagem sacrossanta para os envolvidos no episódio das casas. A imagem da mãe morta, olhos abertos, sentenciada à escuridão do infinito incerto, olhava seus filhos como quem olha ao vácuo, altivando o medo da família sobre a reles estadia humana na Terra e ao findar o cultivo do vazio eterno. Deus se fez presente nas orações egoístas de quem mirava a cena e gostaria crer que fosse miragem a imagem da mãe morta. Ausente aos pés do olhar.

Desde o nascimento de seu primogênito, D. Neiva dissera a verdade. Segundo sua ótica a verdade deveria ser dita, mesmo que segundo sua ótica. Assim a vida caminhou, e de verdade em verdade muitas verdades eram alumiadas, outras arquitetadas, algumas vividas... E a verdade tornou-se refém de si. Quando da infância a verdade se fazia presente para a obediência dos filhos e para as médias escolares não fugirem do controle. Quando adolescentes a verdade lhos servia para trilharem o caminho correto, o caminho do bem, e deixar a vadiagem aos vadios filhos alheios. Na idade adulta a verdade continuou sua saga dantesca em busca de não se sabe o quê. Mas ao que consta, hoje é perceptível que a verdade não passa de um argumento para o argumento da falta que faz uma certeza.

Eram muitas e de variados tons, do mais claro ao retumbante escuro, do pastel ao fluorescente, de Tarsila a Caravaggio. Assim eram as casas, assim se amontoavam como em uma grande cidade onde circundava apenas uma pequena vila. Seus moradores de nada necessitavam senão seu próprio meio, uma auto-suficiência beirando ao nicho ecológico de qualquer animal.
Pela manhã de uma certa sexta-feira, dia sagrado ao vilarejo, quando a jaula se abria para a soltura dos animais indefesos e para os do topo da cadeia alimentar, o movimento era incomum para aquela paz atormentada das fofocas e dos burburinhos angelicais. Na casa verde a vermelhidão se fazia imperial como as palmeiras, e um rio e outras tristezas jorravam seus resíduos para fora entre o chão e a aquela porta banhada a hemorragia fresca. Nada de alarido anterior aos cochichos da vizinhança provocados pelo espetáculo, prova ocular não havia, tampouco foram encontrados instrumentos cortantes, torturantes ou outros fazedores de dor. Apenas sangue fluindo pelo batente e no espaldar do tosco móvel onde agonizou D. Neiva, era um corte estreito e profundo entre as costelas atingindo o coração, coisa de profissional! O autor da obra preocupou-se em girar o objeto, um tipo incomum de faca, a rubrica estava garantida.

A aglomeração, à chegada da imprensa, era digna do sensacionalismo fazedor de audiência, muitos transeuntes e curiosos dificultavam os trabalhos periciais da polícia científica e dos médicos legistas. Periódicos televisivos noticiavam ao vivo a famigerada eventualidade com a malícia própria das meias palavras, onde basta a opinião de si para resolver verdades alheias. Essas verdades factuais ainda renderiam muitas matérias e com elas suas isenções, além de lucros e dividendos para os detentores de algumas concessões governamentais.

O revés de D. Neiva teve seu prelúdio no culto de terça-feira, segundo alguns fiéis da vizinhança ela estava com o demônio encarnado em seu corpo, virava os olhos, babava e até bocejava, eis que Lúcifer acabou sendo sentenciado pelo bondoso pastor Herculano, Sai satanás! Sai demônio desse corpo que não lhe pertence! Oh senhor! Leva de nosso meio essa besta do apocalipse! Sai exu traça rua! Xô satanás! Muitos dos irmãos interpretaram aquele “satanás” sentenciado pelo nobre ministro da fé como um prenúncio daquela fatídica sexta. Após o culto a vizinhança teceu inúmeras elucubrações acerca daquela sessão de descarrego, Foi fora do normal! Nunca vi coisa igual! Era o tal Exu mesmo. Queima ele senhor! Mas para D. Neiva aquilo fora obra de Cristo, estava ela mais leve, aliviada, o encosto enfim a deixara em paz, estava sem pesos. Ao menos até o desjejum da tal sexta-feira.
Muitos comentários indecorosos sobre a idoneidade daquela mulher foram propagados entre a terça-feira do descarrego e o fatídico dia de seu entrever com o carrasco. Afinal uma mulher direita não sucumbe às verves do demônio. As sentenças eram muitas e sortidas, maléficas e menos maléficas, umas com muito outras com pouco veneno, mas sempre com a peçonha nos caninos. Mas Deus dá seus avisos, inclusive os morais, e tal evento sanguinolento mudou muita coisa. É... as coisas mudam e junto delas as pessoas.... Pessoas são mundanas.
Curiosos transfigurados em defensores da justiça de sua própria casta às suas próprias sortes concediam entrevistas como quem concede uma relevância, relatando devaneios sobre a dignidade daquela senhora dedicada aos filhos, mãe solteira, mas zelosa, pobre, mas preocupada com a educação filial e que jamais deixara faltar algo em casa. A imprensa os disputava como cães a urinar o território, quem tinha maiores, ou quaisquer, informações, mesmo que desprovidas de conteúdo ou verossimilhança, sobre a infeliz sanha que aplacara aquele exemplo de exemplar humano de nome Neiva. sentado à poltrona à luz do sagrado jantar o expectador médio brasileiro necessitava saber o desenrolar do novelo, como novela que não se pode perder o fio da meada.


Entrevista concedida à rádio Jovem FM por Seu Manoel do armazém três semanas após o crime:

- D. Neiva tinha sessenta e três me parece. Mas tinha uma aparência jovial, sempre brincando, saía pra dançar no fim de semana, bagunçava... Apesar do pastor Herculano reprová-la nisso. Isso era ela mesma que me dizia. Era alegre com a vizinhança. Trabalhava muito, vendia bijuterias na vila. Suas “jóias raras” segundo ela, mas falava isso pra fazer graça mesmo, era brincalhona (rsrs). Mas vou te falar... A mulherada da vizinhança adorava essas tranqueiras viu! Com esse dinheiro ela sustentava a casa toda, era luz, água, telefone e aluguel. Fora o mercado! Que era seu filho mais velho que fazia. O Alfredo. Na semana que aconteceu o ... o ... o .... nem gosto de falar viu! Bom naquela semana ela andava se aconselhando demais com o tal pastor Herculano. Ele a recomendou que evitasse as tentações, principalmente porque ela, com aquela idade, deveria servir de exemplo pras moças mais novas da vila. Deveria se dedicar mais à família, Mais! Aquela mulher praticamente vivia pra família! Não tinha vida própria! No máximo ia ao baile da terceira idade! Por isso odeio pastores, padres e tudo isso aí. Estão acima da lei! Eles mandam as ovelhinhas obedecem! ( Da palavra “Deveria” à “obedecem” a entrevista fora editada pela rádio por motivos éticos)


Não mais as lágrimas importavam, estava dura feito rocha em dia de outono, o choro não mais que uma água indesejada em dia de sol. A mãe posta. Isso posto, o corpo foi velado após as complicações e demoras relativas ao caso findarem. O IML tardou com a liberação do cadáver. Seu velamento fora feito à principal praça da rua principal do vilarejo, muito próximo às casas amarelo fosco e a meio acinzentada, onde moravam seu João Custódio e Firmina, respectivamente. Eram esperados milhares de pessoas para o cortejo fúnebre. O que irritou muito Custódio que mal pode ver seu futebol em paz. Mas Custódio era gente de bem e bem humorado, sua solução foi abaixar o volume da televisão. Firmina e Custódio foram entrevistados por vários meios midiáticos. O que culminou na aquisição de dois computares financiados em pequenas parcelas a se perderem de vista nas Casa Bahia para poderem ler suas entrevistas e ver suas fotos na internet, algo raro para aquela gente pobre, mas alfabetizada.

Um transeunte que espreitava a localidade havia dias foi denunciado e encarcerado, preso e condenado em júri popular, isto é, pelo arbítrio, não o livre, da população indignada e dos formadores dele. Todos do lugarejo aceitaram a idéia mesmo antes dos laudos periciais serem definitivos. Seu nome, Jarbas. Seu rosto não causava estranhamento naquele povo, sua fisionomia era para muitos familiar, seria ele o antigo entregador de gás, pizzas, jornais, flores, o vendedor de doces ou coisa que o valha, ou outras coisas mais.... e mais.... e coisas... Porém, de verdade mesmo apenas que o assassino fora preso, para o alívio de quem sabe o que diz.
As vítimas da verdade foram se recolhendo pouco a pouco. De D. Neiva ao expectador remoto com seu jantar esfriando a assistir seu telejornal noturno, poucos entenderam, outros nem sabiam mais, outros poucos questionaram seus papéis naquele anfiteatro onde as cortinas se fechavam. A imprensa era simpática ao vilarejo.


Tempos idos D. Neiva esquecida, seus filhos já anciãos e não menos esquecidos, esqueceram-se do ontem e do amanhã, o hoje presente era a única lembrança viva que guardavam e assim o queriam. Para esses quinquagenários o amanhã não era mais tão distante, viviam para a vida viver com eles, até o findar da morte. Contudo havia sim uma lembrança, ou melhor, uma herança materna. Havia uma verdade.

Rodrigo H.

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