quinta-feira, 22 de janeiro de 2009


UMA FENDA NO TEMPO


“É chegada a hora do recolhimento. As trevas são
o prelúdio da estação vindoura, cada
gato delgado cobrará sua destreza felina em prol
do paladar insatisfeito”





Cinco de Janeiro de 1994, Sr. Santos acordou às onze horas como fizera religiosamente desde o começo do verão. Notou à sua volta inoportuno chão turvo, mas não de uma turvação inanimada, de materiais como o pó e a sujeira de porcos... A razão transfigurara sua qualidade momentânea ao sol que, ao adentrar à janela da casa, deparava-se com um obstáculo, a velha cortina que sua mãe lhe presenteara em razão de seu aniversário doze anos antes.
Ao desjejuar pairaram-lhe a meditação do não-pensamento e a contemplação dos prazeres palatais e visuais, tal inação abriu-lhe uma fenda no tempo, onde a satisfação sensível era a única forma digna de realidade vital, um gozo austero raramente percebido, inúmeras vezes experimentado em vida. A cortina foi aberta com uma rapidez inebriante deixando a luz do dia entrar a ofuscar-lhe a visão. O tempo parou em sua breve ofuscação ocular, Que deleite aquele! Os sentidos são a manifestação da alma em vida! Santos assumiu tal idéia num súbito irracional, pois quanto à questão da alma tinha sérias dúvidas. As premissas de futuro quando se é jovem são evidentes e invariavelmente contundentes. Era tempo acordar.
Ao recuperar-se de tal sublime quimera, um distúrbio prazeroso de percepção externa, tivera a mesma visão de anos abrindo aquela janela, os mesmos pássaros (andorinhas, pardais e pombos... e como tinha aversão aos pombos!), as mesmas árvores, os mesmos transeuntes se aglomerando e poluindo seu campo visual. Recordou-se do que experimentara ao acordar e deleitou-se com aquela vista do passado próximo, um pretérito perfeito que não se esvaíra de suas sensações e perduraria durante todo o dia se assim fosse preciso, mas... “Viver não é preciso...”
Bem ao fundo daquela turva paisagem avistava-se o mar, este sem nenhum sentido poético-venerável para nosso amigo. O mar simplesmente estava lá compondo pictoricamente a paisagem, que, aliás, não era de bom-grado a Santos o conjunto dos elementos de tal obra. Porém desta vez notou ele uma figura alheia àquele turbilhão caótico-físico, um exemplar feminino quase metafísico, uma hipótese não descartada dada a distância entre ele, aquele corpo e seus óculos de correção, quebrados dias antes por um soco que levara de um policial que o repreendera por uma dessas diligências policiais acerca de meios escusos.
Santos faria uma constatação, um fio de esperança fez-se notar passageiramente em seu ego.
À porta de sua casa teve medo e, titubeando, abriu-a de supetão! Que prazer foi-lhe imprimido ao deparar-se com os porcos que, como de costume, aporcalhavam-se em um terreno contíguo, a lama estava pronta para um bom mergulho...
A rapariga encontrava-se beirando o mar naquela vastidão oceânica, a distância era tal entre ela e Santos que ele às vezes a perdia de vista dada a ínfima percepção de seu corpo às ondas. Sorrateiramente Santos esgueirou-se por entre aquela sua paisagem de calafrios quando vista da janela, ia assim ao encontro de tal figura ausente de sua vida. O caminho era árduo e os obstáculos breves, um espaço curto de areia quente por causa do sol, e nada mais.
Ela não o olhou, e tendo lha dito bom dia ela respondeu:

- Bom dia! , e nada mais...

Ela não o olh... “Malditas convenções! Todos as dizem: Bom dia, tarde, noite, sorte, aliás, fora o que disse minha mãe, a mim, quando daquela prova com lagartos e outros répteis, o resultado? Os lagartos venceram... Boa sorte! MALDITOS SEJAM! Porque não ”Boa morte!” ao invés de “Meus pêsames!”? Hipocrisias, hipocrisias, hipocrisias!
“Feliz aniversário!”, poderia não ser feliz, quem se importa? Mas ele insistiu:
- Meu nome é Jaime, de sobrenome Santos, muito prazer! (silêncio) da minha janela vejo todos os dias a mesma paisagem. Imutável. Hoje percebi que a senhorita a havia invadido e resolvi ver se não estava enganado, se isso tudo não era uma obra de minha visão, estou sem meus óculos e... Uma miragem entende?
- Entendo!
- Qual é o seu nome?
- Serafina.
Ela não virou-se. Respondeu, mas não se virou. De costas era uma bela mulher, - Uma infame mulher! - estava condicionada pelas convenções sociais. Provavelmente não queria aquele homem ali a estorvá-la, mas respondeu, “Bom dia!”, são regras básicas de educação e dos bons costumes
“Malditas convenções! Bom dia... que infâmia! Sejamos infames!”, ela não se virou.
Santos sentou-se às suas costas.
- Serafina? Nome de anjo.
- Não!
- Não o quê!
- Não é nome de anjo. Apesar de não terem sexo, anjos têm nomes masculinos, Gabriel, Miguel... Entende? O nome é Serafim, e não é nome pessoal, é um tipo, Serafim é uma denominação para um determinado tipo de anjo.
- Porra!
- O quê!
- Desculpe!
- Por que você disse isso?
- Não sei! Posso encostar minhas costas nas suas?
- ...S...s...sim...

Santos deleitou-se com uma sensação inesperada, uma voluptuosidade quase tântrica ao som bravio do mar. Um cheiro inexato penetrava-lhe as narinas, um odor salino adocicado com o perfume da pélvis feminina, expostos à maresia de uma tarde tropical.
Santos atordoou-se com pensamentos acerca das convenções sociais, onde se ateve por um longo tempo... Recordou-se dos deleites sensoriais experimentados pela manhã, quando do desjejum, e passou a contemplar o que para ele era lugar comum, a visão do mar.
O que acabo de descrever parágrafo acima pode parecer dúbio, quiçá ambíguo. Todavia é sabido que o mar não tem olhos e que tudo o que ele vê, vê com os olhos de Iemanjá e de Rei Netuno. Talvez por um ou outro olho estrábico de alguma ninfa, mas dele próprio não!
Ficaram por horas ali sentados, acostados um ao outro sobre a branca areia, sem pronunciarem um advérbio sequer. Serafina vestia um biquíni de cor negra que exaltava suas formas mais singulares, despreocupada daquele estranho indivíduo que lhe abordava num devir, parecia inofensivo. "Uma formiga! Dou-lhe meu nome e nada mais!".
Ao principiar o ocaso Serafina solta um suspiro de contemplação.
- Santos né?
- Hã!
- Seu nome é esse! Santos, não?
- Sim! S...s...sim, SIM.
- Fuma?
- Não obrigado!
- Pois deveria.
- Por quê?
- Não sabes o quão prazeroso é...
- Mas e o câncer?
- Como assim?! Que câncer?
- O seu.
- Mas eu não tenho oras!
- E se tiver.
- Não tenho!
- Mas, poderá ter.
- Não tenho e pronto!




Um silêncio sepulcral imperou durante horas, Santos parecia impávido, ao contrário de Serafina. Não era isso que ela esperava de um flerte. O homem começara tão gentil chamado-a indiretamente de anjo e agora vinha com essa história de câncer. “Que absurdo!” Mal a conhecia.
Após horas, já pela noite.
- E você tem?
- O quê?
- Câncer?
- Não sei.
- Já foi ao médico?
- Não gosto de médicos!
- Pois deveria ir.
- Mas não vou!
- Sabia que daqui poucos anos, na nossa velhice, teremos grande propensão a desenvolver algum tipo de câncer?
- Não. A única coisa que sei é que todo dia quando acordo, abro a janela e vejo a mesma e infeliz paisagem a me torturar com coisas repetitivas. Desde o começo do verão é assim. Vim aqui para descansar, tirar férias da mesmice da metrópole, e o que encontro? A mesmice da praia. Pelo visto você é muito bem informada. Estuda?
- Não, parei no colegial. A julgar pela voz e pelas costas, você deve ser um belo homem.
- Não, não. Eu tenho uma cicatriz no nariz, quer ver?
- Não!
- Ora que mal tem?
- Não quero te olhar nos olhos!
- E porque não?
- É difícil ver a verdade no olho masculino. Mas vocês têm uma facilidade em demonstrá-la.
- Qual o problema? Já teve alguma decepção ocular?
- Que papo é esse?
- Então porque não me olha?

Um novo e rígido silêncio veio abater aquelas duas criaturas, acordaram então que não se olhariam de frente. Serafina mergulhou mar adentro sem se despedir de Santos, ele a aguardou por um longo período, mas como ela não voltou Santos resolveu se recolher, já era noite longa e o sono era convidativo a belos sonhos, desejou sonhar com o rosto de uma ‘anja”, quanto a Serafina, não te preocupes, era exímia nadadora, vivia desde os quinze naquela praia, aos vinte e cinco era guarda-vidas, hoje aos trinta e dois não era dada a esses afazeres, mas ainda adorava nadar, mesmo que pela noite, quando não se vêem ondas quebrando, se exibia na alta estação praticando seu exuberante nado borboleta, os turistas se punham boquiabertos.




Na manhã seguinte Santos já não se importava com sua paisagem alheia, teve um sonho premonitório, onde Estado de Minas Gerais era açoitado por um golpe arquitetado por uma milícia de direita, apoiada pelo exército brasileiro e pelo Pentágono, que tornaria a região independente do Estado Brasileiro com interesses econômicos em tomar os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo para obter saída ao mar e tomar de assalto a bacia de Campos e as regiões de extração petrolífera nos mares desses estados. Narrou tal epopéia onírica ao atendente da padaria onde resolvera tomar seu café da manhã, ou melhor, das onze e cinqüenta e cinco da manhã. Como era de se esperar atalhou o atendente:
-E pra beber? Suco de laranja?
- Garapa. Com limão e açúcar!
Logo ele que não era contar suas intimidades fora fazê-lo logo ao moleque da padaria.
- Troque a garapa pelo suco, por favor!
- Ih! Agora a cana já foi debulhada doutô!
- Tá!
Não poderia tê-la tomada, sua diabete poderia se descontrolar – E o câncer? - Será que tinha? Voltou num desvario hipocondríaco à sua casa e ligou ao seu médico em São Paulo.
- Como é possível descansar? Praia de merda! O câncer que se foda!
Cerrou a porta com tranca para que os porcos não adentrassem seu aconchego nu. Era assim que Santos se sentia, nu. – Não deveria ter contado o sonho ao rapaz da padaria! - Voltou à sua diversão em olhar suspiros de um mar antipoético esgueirando-se entre um emaranhado ondular de animais luxuriosos. Ligou sua velha vitrola, herança de um seu tio-avô, e colocou para rodar seu único vinil de jazz que adquirira num sebo da região central da megalópole. Dizzie Gillespie e garapa eram das poucas coisas que ele apreciava. Ao som de "November afternoon" tornou a buscar por seu anjo sexuado, ou melhor, sua “anja”.
- Bom dia!
- (Raios!) Bom dia.
- Não te vi ir embora ontem!
- Mas você não queria me ver.
- Não queria te olhar, é diferente.
- Como diferente? São sinônimos!
- Pra mim é diferente. Veja que ainda agora não te olho, mas te vejo claramente.
- (Uma mulher inteligente essa hora! É muito pra mim. Agora só falta eu me apaixonar). Fui pelo sono.
- Mas só fui dar um mergulho!
- Foi o sono.
- E o câncer?
- Não tenho.
- E o médico?
- Não fui. Oras! A fumante aqui é você.
- E a cicatriz?
- O que tem?
- Como está?
- Da mesma forma, quer ver?
- Obrigada, cicatrizes me arrepiam.
- Porque esse nome?
- Minha mãe.
- Ela era mística?
- Viu numa novela em que sua atriz predileta fazia uma personagem que levava esse nome.
- E você gosta?
- De novela?
- Do nome.
- Me acostumei.
- E as pessoas?
- Não sei.
- Eu não.
- Não gosta do meu nome?
- Das pessoas. Mas se já te comparei com uma anja!
- Então qual o porquê da negativa?
- Não gosto da situação. Sair de casa...
- Não saia então!
- Não posso. Preciso te ver.
- O que sentes?
- Amor.
- Por mim?
- Sim. E tu?

O silêncio de Serafina o fez concluir o contrário do ditado popular.

- De onde você é?
- Daqui.
- É caiçara?
- Não exatamente.

O poder sensível de Santos não era dos mais apurados.

- Tive um sonho.
- Comigo?
- Nunca vi teu rosto. Não. Conhece Minas Gerais?
- Estive em Varginha certa vez, a cidade do E.T., dizem que região é mística. Crês nisso?
- No meu sonho, Minas era tomada por um golpe de estado e se tornara independente do Brasil, mas dependente do golpe.
- Eu sou independente. Mas os separatistas não eram os do Sul?
- E os reacionários do sudeste. Posso te olhar?
Palpitavam ferozes as artérias de Santos, e ao caminhar solitariamente pelas alvas areias, olhou pra trás, Serafina se indo, ele sem seus óculos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, Serafina ia, ele ia, iam. Serafina se virou o olhou e mergulhou nas águas oceânicas. Já tardara a noite e o mausoléu Santos não ouvira mais os roncos dos porcos. Seu mármore de carrara, sua construção, seu vão aconchego, seu fim no começo, sua eterna cópula solitária, infertilidade outonal. Visões de um paraíso ferido e distante, multiplicador de si, em si mesmo. Seu câncer.

RODRIGO H.

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