sábado, 14 de fevereiro de 2009

Tema 12 - Ditos populares



Quadro da Pureza Embriagada


O quadro se comprazia num caos incipiente, entre as artérias dilatadas e as cores inundadas de sua memória imaginativa de pouca repressão, quando da ingestão daquele estado de alteração psíquica fugaz, em planos anterior e posterior ao que a terra guarda a qualquer ser humano, animal ou mineral, ele cambaleava. De um carteado a outro, de uma rodada à outra, a saideira era sempre o início de um futuro de incerta finalidade. A Irresistível e incontrolável qualquer ação, o fazer se fazia pela simples inércia de um corpo cadente pouco celestial, era homem, e como homem digno de pecados e pecadores tomava sua sentença em qualquer copo que se lhe aparecia diante dos instintos olfativos ou dos verbetes inúteis dos filósofos taciturnos dos corredores arredios da noite da megalópole pouco ancestral. São Paulo era pra ele sua cidade e seu santo de cabeceira, o bar apenas a casa de um a amigo a ser visita num culto baqueano que bem poderia ser a Bach, todavia findos os copos sempre à benção era dada por Baco.

Às três da madrugada a vida ainda não era sarjeta, à mesa se serviam vários dos transeuntes que lhe pareciam aprazíveis, sinais eram emitidos fossem onde e de quem fossem, no carteado, no flerte, nos olhos azuis da morena ou nos castanhos de outrem, o mundo era aquela roda que tende a rodar, aquele sem fim de rumores que aos ouvidos soam como ruídos de um inferno cotidiano, como o barulho das buzinas ou o burburinho do centro velho, nesse horário costumava espairecer-se da agitação do boteco, dava uma volta, normalmente deparando-se com cães de rua a perambular por entre os sacos de lixo expostos à espera do recolhimento, adorava cães, sobretudo os que lhe davam alguma possibilidade agressiva, um chute, um soco, um cuspe, não importava, os cães representavam uma sublimação para sua alma pouco criativa, até a mordida do vira-latas, desde então, preferiu brincar com os mortos. Sua estadia no globo terrestre era assim, nada além de nada, e isso bastava para seus poucos sentimentos acerca das possibilidades futuras, ignorando o significado da palavra ambição. Dinheiro? Os copos eram o custo da vileza cotidiana, dava-se um jeito, ficar sem é que não ia!

O bar cerrou as portas já eram seis horas, nada de sol, o dia amanheceu nublado num frio que anunciava o princípio outonal, não sentira os efeitos do clima, o calor alcoólico lhe dava uma condição de ser superior, uma quentura pontiaguda a dilatar a rigidez muscular, suas narinas aumentariam dez por cento seus diâmetros, respirava bem, mas a sede lhe feria os órgãos internos, nem a mais bela mulher seria capaz de lhe abrir o apetite por carne ou por uma mágoa qualquer, um ser estático caminhando a esmo retrata o animal inferior ao que muitas vezes somos obrigados a ser e jamais assumir.

Consolidado o dia e o orvalho evaporado das folhas novas da cidade grande, não havia mais condição para caminhadas embriagadas, sob a marquise de um estabelecimento abandonado situado à Ladeira Porto Geral, deitou-se desfalecido tomando pouco cuidado, aquele mínimo elementar, difícil e possível, de ter-se consigo. Dormiu enquanto o movimento dos camelôs começava a perturbar àqueles desinformados da rotina metropolitana que andavam em busca de sossego, algum forasteiro interiorano ou provavelmente um gringo anônimo encantado com os desencantos tropicais terceiro-mundistas, normalmente um europeu exótico qualquer. Dormiu, e ninguém pudera dormir por ele, infelizmente, se possível fosse abdicaria do sono por mais um trago no gargalo.

Em trapos acordou por volta das dezoito, quando aquela muvuca humana faz questão de correr atrás dos trens e dos ônibus para que, já acomodados, quando o espaço físico do meio de locomoção permite o uso adequado dessa palavra no particípio, os transportes correriam por eles, digo correriam pelo simples fato de, a esse horário, aqueles que desejam retornar às suas moradas ficarem parados em busca de uma fenda na avenida ou numa rua indistinta para que o tráfego sê liberado, o que a essas alturas da evolução humana só ocorreria lá pelas tantas da madrugada. Acordou, mas nem tanto, seu café foi uma xícara, uma dessas de chá, leite ou café, sem luxo, porém funcional, o que a ela lhe dá razão de existir, contendo uma substância etílica qualquer, o suficiente para devolvê-lo ao estado de vigília da noite anterior, à pureza da embriaguez mal falada.

Subiu a ladeira num cambalear entre ele e o equilibrista de João Bosco, mas nesses famigerados anos 2000 o que se passa pelo rebolado popular já não se distingue em qualidade de outros tempos idos, nada de saudosismo, à época mal havia nascido nosso homem, mal largara a chupeta e os peitos maternos, dizem alguns na mídia que eram os tempos de chumbo, mas tanto fazia a alienação era a grande glória de seu legado terrestre. Esse dançar bêbado provocou a ira da guarda que sem ter muito trabalho, ao que os soldados supunham, lhe deitaram fugaz repressão, desnecessário aos cumpridores da lei, boa demonstração de pouco poderio aos passantes que não identificavam naquela figura torpe um dançarino, mesmo por que não o era. A cachaça lhe protegeu das pancadas da borracha, pouco sentiu dos vergões que lhe assolaram a pele, os camelôs recolhiam atabalhoadamente o que se dava pra recolher, corriam em direção a um ponto cego qualquer, a saber que não deveriam haver oficiais armados por lá, de lá muitos assistiram uns poucos guardas, três mais ou menos, protagonizando infame espetáculo bélico, onde para armas bastavam mãos e membros inferiores.

Ele caiu, caiu não, rolou, rolou ladeira abaixo, rolou bêbado ladeira abaixo, rolou por vontade alheia, por vontade social, coitadinho daquele pouco ser humano que rolava a ladeira, a resumir os sagazes comentários dos populares que presenciaram a ocorrência, como se diz no jargão policial. Entre vozes e vozes a entoarem exclamações uma se destacou, uma que nada tinha com o fato em si, Que goleada o Santos deu ontem na Portuguesa você viu, ao que respondera o interlocutor, Mas o time da Lusa não tem ninguém, só jogador em fim de carreira, tudo velho, empurrar bêbado da ladeira é fácil.



Rodrigo H.

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