quinta-feira, 21 de maio de 2009

Tema 14 - Amante


Sem atrito



Fazia calor naquela tarde de inverno, mais umas dessas indeléveis intempéries climáticas fruto das modernidades mundanas, a temperatura era muita para aquele pouco corpo moreno de sol e franzino de vida. Era mulher já quase madura, quase feita, oscilava a idade entre vinte e sete e vinte oito anos, uma dessas esquisitices femininas para não se comprometer com a vida, mas a verdade é que continuava linda como aos dezessete ou dezoito. Desabotoou a blusa branca que transparecia o sutiã também branco, não sacou-a, esperou. Desatarraxou o sutiã com a blusa ainda cobrindo seu colo, o sutiã caiu ao chão colocando à mostra seios firmes quem olharam ao adversário como quem incita o guerreiro à luta, a tênue cortina que protegia seu peito rasgou-se por uma brusca puxada de seu conviva casual, quando da nudez o humano parece esquecer quem assim deve ser, assim sempre foi, e assim será. Despe-se a roupa fica o pudor, coisa pouca que muito afeta a vida em sociedade, coisa grátis que cobra um tento a cada consciência de que suas existência e criação dependem de um humano superior, sacerdotal, que quando do himeneu de seu prelúdio animal sede à tentação, ademais de qualquer voto de castidade, o maior pecado é ignorar ser o humano uma espécie dentro da espécie. O suor marcou essa tarde, o suor pelo sol a pino, o suor das axilas, o suor dos nervos em fúria de transição, o suor da contemplação estética de outrem, o suor corpóreo que minimiza o atrito como numa equação física a se ignorar o atrito para que se chegue a um resultado menos dolorido possível, o suor do feromônio.

Consumado o ato vestiu-se de sua saia negra de secretária, abotoou os insinuantes botões da blusa braço-transparente, tomou de sua bolsa e se foi, deixou-o estatelado a dormir, como um servo em seu descanso pós-obrigação. Trancou a porta do quarto quebrando a chave na fechadura de modo a não se poder abrir a porta tão cedo. Ao adentrar sua casa, como de costume, seu esposo já lhe esperava com a janta ao forno, pato assado com batatas souté era o prato do dia, saboreou-o com muita gana, estava delicioso, melhor que o breakfeast daquele mesmo dia, quando ela mesma preparara deliciosas panquecas e ovos dourados acompanhados de suco de laranja e chá preto para seu esposo que adorava.

No dia seguinte faltou ao trabalho na parte da manhã, queria saber como estava seu chefe no quarto daquele hotel. Na recepção recebera a notícia que aquele quarto estava desocupado e que se quisesse estava em promoção a diária com meia pensão. Aceitou a proposta e pegou o cartão, substituíam todo o sistema de fechadura dos quartos do hotel para cartões magnéticos que bastavam serem postos no encaixe para a porta ser aberta. Ligou ao escritório e informaram-na que o chefe ainda não chegara para a lida, previa um serão para depois do serviço, do celular mandou um torpedo ao marido avisando que ficaria até mais. Já era quase noite feita quando ele chegou, houve uma pequena discussão por causa do incidente da chave, mas ela recordou-lhe que não fazia mais que realizar um fetiche dele, ele consentiu com a cabeça, mas não se conteve, foram inúmeros safanões, murros e chutes, violência bruta em seu estado mais bruto, tentou se desvencilhar daquele parceiro antes tão desejoso e amável, mas era fraca demais para aquele gordo.

Não retornou à sua casa, dormiu lá mesmo toda dolorida da surra, mas como era boa a dor! Poucos sabiam apreciar a transcendência da dor e seu esposo não era um deles. O patrão gordo chegou ao hotel por volta das quinze horas, mesmo período em que seu marido dava queixa com o delegado Zé da décima nona DP:

- Infelizmente temos que aguardar quarenta e oito horas para registrarmos queixa de desaparecimento.

- Que absurdo!

- Não posso fazer nada, só cumpro as leis.

Ela acordou com um lindo ramalhete de orquídeas a seus pés, às vezes seu chefe se dava ao luxo de rompantes românticos, o que lhe dava medo, não queria maiores envolvimentos emocionais desejava apenas o cargo de executiva chefe, o que jamais conseguira. A PM encontrou seu corpo coberto com tais flores, roxo e desvanecido à porta da suíte, ao criado-mudo pendia um bilhete sem rubrica:

“O amor transcende a barreira da moral, a isso são raras as compreensões.”

Ao avistarem o bilhete um estrondo vindo do banheiro, um som de queda ou algo que o valha. O corpo obeso com hematomas pela cabeça devido à pancada à beira da banheira, pouco sangue havia, os laudos periciais acusaram morte por envenenamento. Sem solução o caso foi arquivado. Enquanto se armava o circo, polícia, imprensa, curiosos e transeuntes, seu esposo tomava um delicioso e amargo café no estabelecimento contíguo.

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