quinta-feira, 21 de maio de 2009

Tema 16 - Liberdade



Um segundo





Só mais um copo por favor, Tomou a derradeira e partiu do bar do velho Matias, perambulou pela cidade em busca de alguma resposta que não havia encontrado nem em livros, tampouco em amigos, e a cidade também lhe deixou com sua ausência. Carlos tinha apenas vinte sete, vinte sete e nada de a vida acontecer da forma como sonhara que aconteceria aos vinte sete quando dos seus quinze anos. Frustrou-se cedo demais, achava a liberdade algo palpável como a carne ou uma roupa qualquer que se escolhe em dia de inverno, um vazio criado pela razão e apoderado de seu corpo interno, fez da busca pela reposta um desespero. ]

O relógio do mosteiro de São Bento sinalizava dezessete horas em São Paulo, verão intenso somado à estufa de um asfalto perturbador fazia abafar a capital, o tempo fechou, o negrume das nuvens obrigou alguns automóveis a acenderem os faróis outros a desviarem o caminho, ao sentir as primeiras gotas da tempestade tocarem seu braço Carlos parou e olhou ao céu, não gostou do que viu, cerrou os olhos, às vezes é melhor deixar de ver para gostar, ao seu redor uma correria generalizada, alguns guardas-chuva circulavam nas mãos de quem fugia do temporal, outros voavam com o dono molhado tentando recuperar aquele bem tão valioso que não custava mais que dez reais no camelô. Chorou. Chorou porque ninguém o perceberia chorando e uma sensação de bem estar descompromissado com a realidade estancada lhe envolveu, as lágrimas e a chuva seriam a mesma coisa, era tudo água e fuga, e chorando caminhou, esbarrar-se-ia naquele tumulto diluvial entre transeuntes e passantes que mais pareciam passistas de um samba desgovernado, um banho público sem nudez de vestimenta.

Chegou ao Vale do Anhangabaú quando a chuva já se desviara para outro destino, apenas vestígios de sua passagem havia pelas ruas, poças sujas de uma cidade não muito limpa mergulhavam na paisagem de um crepúsculo mal expresso. De cima do viaduto do chá cuspiu, Demorou viu! Disse a um jogador de búzios que fazia seu trabalho, Os búzios nunca mentem rapaz, volte ao seu emprego, Não posso, aquele lugar me sufocava, e agora que já pedi demissão não volto atrás, meu orgulho é grande, quero me libertar das amarras desse sistema, São cinco reais o jogo, Carlos saiu correndo no meio do viaduto, não tinha dinheiro, não tinha nada. À Avenida São João parou ponderou e olhou envolta, de um lado a Igreja dos Homens Pretos no Largo do Paissandu de outro a Galeria do Rock, não gostava de nenhum dos dois, nem da igreja nem de roqueiros, desceu a São João de volta ao Anhangabaú. Estava livre, sem trabalho, sem família, sem dinheiro, livre de qualquer dignidade e agora livre de seus sapatos molhados pela chuva.

Descalço adentrou ao edifício do Banespa, a segurança não o viu passar era discreto apesar do fedor pós-chuva que exalava como um cão, preferiu a escada ao elevador, a cada passo, a cada degrau que subia olhava para o que ficou e o que deixaria de ficar, minimizou sua pequenez universal sentindo-se grande diante dos lances que passava por cima, não queria pensar no passado sua vida estava em plena elevação tardia, mas elevação, logo teria a cidade aos seus pés, do mirante vê-se o que a liberdade pensaria em representar caso não houvesse outros e maiores mirantes, nesse e em outros universos.

Sucumbiu no décimo andar da Torre, pôs-se aos pés do sono. Ninguém o percebeu por ali, as escadas só eram usadas em caso de queda de energia ou incêndio, como nem um, nem outro aconteceram naquele noite, ele dormiu em paz. Apesar do sono tranqüilo acordou dolorido pelo mau jeito com que dormira por entre os degraus. Levantou-se e com fome continuou sua saga rumo ao topo da cidade, após algumas horas chegou ao mirante onde muitos turistas e compatriotas observavam de lá o cinza suspenso que encanta e faz tossir. Todos aguardavam o poente, visitantes japoneses comentavam em inglês que certa vez um paulistano de passagem por Okinawa lhes dissera sobre a beleza controversa do pôr-do-sol de sua cidade natal. Para um homem em busca de liberdade a cena do crepúsculo pode ser seu exato oposto, ao contrário do que afirmou o campeão de pára-quedismo Jorge Souto em entrevista à TV.

Carlos experimentaria a liberdade quando muitos visitantes já deixavam o local, apenas os japoneses presenciaram a queda, daí a impossibilidade compreensiva de os seguranças atenderem aos seus chamados de socorro, um help com sotaque nipônico, um vôo breve e a liberdade eterna, preso ao martírio físico não sabia o que viria após chegar ao solo, a dúvida era a sua verdade, pensava quando um pombo sujo de urbanidade lhe passou por suas vistas alguns milésimos de segundos luz (ou menos), pensou no vôo que alçara instantes antes, e agora vislumbrava seu pouso como a um urubu a avistar as carcaças de peixes miúdos ignorados pelos pescadores. Antes de o seu corpo se estatelar-se ao chão vieram-lhe imagens de seus miolos, tripas, pâncreas e restos de carne e sangue num mosaico sinistro entre ossos quebrados e poças d’água de chuva suja. Não gostou do que viu, imaginou-se como a um resto de estrela desfalecida, Um pó! Bradou aos peitos cheios antes de o coração parar sua atividade mundana. Livrar-se da vida é dádiva para poucos.

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